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Dor
que enlouquece
«(…)
Tinha sido o tribuno e o comandante da populaça, para que a Nação se defendesse
das pretensões de el-rei de Castela e não lhe deixasse levar a coroa do monarca
falecido, na herança da infanta portuguesa dona Beatriz, esposa do rei invasor,
mais a bandeira e a história da terra portuguesa. E o caso foi que, sem a
intervenção daquele mestre tanoeiro, talvez a Nação não tivesse por chefe o
jovem Mestre de Avis, e tivesse esmorecido na defesa da sua independência. Entre
os homens de acção preponderante que apoiaram o bastardo de el-rei Pedro I e da
plebeia dona Teresa Lourenço à subida do trono, três havia de incontestável grandeza,
Nuno Álvares Pereira, fidalgo e guerreiro juvenil; Álvaro Pais, o velho chanceler
dos tempos de el-rei Fernando, e aquele valente mesteiral (mestre artesão), que
se chamava Afonso Eanes Penedo. Ei-lo, aí vem! anunciou outra voz. E com ele
aquela alma boa do povo. O nosso querido velhinho, Álvaro Pais. Certo se irá
recolher o Mestre aos paços de Apar S. Martinho. Viva o Mestre!, gritou uma
multidão próxima das Portas de Ferro. E pouco depois, adiante de todos,
mulheres e carpinteiros da Ribeira com archotes acesos. Sem nenhuma ostentação
de poder, singelamente, quase ombro a ombro com o povo que o adorava, o Mestre
de Avis subia lentamente com Álvaro Pais, muito abordoado ao seu bastão,
arrastando por ali acima, penosamente, com as suas pernas trôpegas. Ao lado
dele, na esquerda, um legista que, há dois anos, viera da Universidade de
Bolonha onde se formara em leis, o doutor João das Regras.
Um
pouco atrás, acotovelados pela multidão dos maltrapilhos descalços, dois pajens
com tochas acesas, e depois o comandante dos besteiros. Oito homens de armas
por escolta e mais ninguém naquele cortejo do Defensor do Reino, título dado
pelos cidadãos de Lisboa, o Mestre da Ordem de Avis; um infante bastardo pelo pai,
um homem do povo pela mãe. Havia explicação para o cortejo ser pequeno. Ainda
nessa tarde o Mestre recebera avisos de certos movimentos suspeitos da esquadra
castelhana e fora logo para as Portas do Mar, sem nenhuma comitiva, para
observar ele próprio qual seria o intento do almirante de Castela. E por lá se
demorara pela noite dentro, de atalaia, sem ter podido perceber o intento
daquela evolução dos navios sitiantes. Tomou precauções, mandou um aviso
confidencial às torres e às quadrilhas que guardavam as portas para se manterem
em dobrada vigilância, mas não quis dar alarme à pobre cidade, já tão
atribulada de provações. Nas trincheiras da praia dirigiu ele próprio, sem
alarmes, as precauções de sobreaviso e, como em outras ocasiões, teve a
auxiliá-lo dedicadamente o arcebispo de Braga, Lourenço, com o seu estado-maior
de cônegos e a sua hoste de frades e clérigos seculares. Os trabalhos e os
sacrifícios eram para todos.
O
arcebispo, um homem intrépido, não admitia isenções de privilégio para ninguém
naquela conjuntura angustiosa. Para ele era também serviço de Deus defender a
Nação à mão armada, e a sua hoste de tonsurados não era das menos fervorosas
nem das menos destemidas na defesa das trincheiras e no arranque das sortidas.
Fora ele até o principal organizador na defesa do lado do rio, passando indiferentemente
da sua tarefa de dirigente aos mais rudes trabalhos de construção, para estímulo
da peonagem e dos seus clérigos. Pela noite adiante chegara o batel em que
vinha o comerciante do Porto, João Ramalho, com a notícia de ter atracado em
Cascais a esquadra de socorro. O Mestre combinou então com o Ramalho o plano a
seguir, não só quanto à entrada dos navios, mas também a respeito do apoio que
poderiam dar-lhe os defensores da cidade. Assente o que devia fazer-se para que
a empresa, realmente grave, tivesse bom êxito, Ramalho voltou para Cascais com
o mesmo risco e destemor, e o Mestre regressava agora ao paço para ali discutir
com os seus cavalheiros e caudilhos do povo, entre os quais tinham lugar
proeminente os homens de ofícios da Casa
dos Vinte e Quatro do povo, com todas as minúcias e disposições da
parte do plano que pertencia à cidade. E era neste assunto gravíssimo que o
Mestre vinha a conversar com aquele velho alquebrado, que fora o cérebro
dirigente da revolução e trazia em si, no seu arcabouço de septuagenário, uma
das maiores almas de Portugal». In António Campos Júnior, A Ala dos
Namorados, 1905, Luso Livros, Uma nova forma de ler, Formato digital, 2013.
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