quarta-feira, 2 de março de 2016

A Primeira Crónica Portuguesa. José Mattoso. «… o narrador, atribui a Afonso a plena autoridade (isto é exercida sem prévia consulta dos representantes da primeira ordem) sobre a escolha do bispo, e não hesita em ameaçar de morte o legado papal…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Em primeiro lugar, por meio de uma cuidadosa comparação textual das três versões mais extensas, a IV Crónica Breve, a Crónica de Veinte Reyes e o Livro de Linhagens, procura reconstituir, tanto quanto é possível, a versão primitiva da obra em que se basearam essas mesmas versões, aperfeiçoando, assim, o trabalho ensaiado outrora por António José Saraiva apenas para as duas primeiras. A reconstituição de Filipe Moreira passará, sem dúvida a ser usada como a versão canónica, digamos assim, daquilo que o seu autor chama, com razão, a Primeira Crónica Portuguesa, título que tem a vantagem de simplificar o criado por Diego Catalán. Os historiadores e filólogos interessados por estes temas agradecerão, sem dúvida, o facto de assim poderem dispor de um texto seguro e fiável. Em segundo lugar (é este, a meu ver, o principal mérito da obra), Filipe Moreira circunscreve, de forma mais fundamentada e completa do que até aqui, o efectivo conteúdo do mesmo texto. Com efeito, até agora, as atenções concentravam-se sobre a estória de Afonso Henriques. Poucos foram os autores que se interessaram pelas notícias da IV Crónica Breve acerca de Sancho I e dos reis seguintes. Filipe Moreira, a meu ver com razão, demonstra que estas informações faziam já parte integrante da obra primitiva. Todavia, a sua reconstituição incide sobre um texto cujo conteúdo não vai além da morte e sepultura de Sancho II em Toledo. A reconstituição formal da Primeira Crónica Portuguesa infunde-lhe, assim, uma coerência e uma especificidade que até hoje não tinham sido percebidas. Torna-se inevitável considerá-la como uma obra redigida na corte régia. O teor e a forma da mais longa notícia de todas (embora com escassas 20 linhas…), acerca da deposição de Sancho II, para além das consagradas a Afonso Henriques, confirmam essa mesma origem. Com efeito, o ponto de vista favorável ao conde de Bolonha e o relevo dado ao clero na exposição dos factos tendem a legitimar a sucessão do rei deposto, o que só pode ter acontecido em ambiente cortesão criado pelo triunfo de Afonso III. Ora estes dados permitem alterar a opinião comum segundo a qual a obra de que a IV Crónica Breve deriva teria sido redigida em meios senhoriais. Eu próprio admiti essa tese, como a mais verosímil dentro das alternativas possíveis, tendo em conta que se admitia datar dos anos 40 do século XIV. Trata-se também de uma questão a aprofundar.
Por último, Filipe Moreira procura demonstrar, sem todavia transformar a sua argumentação em tese, que se trata de um texto com uma inegável unidade. Na sua opinião, as hipóteses anteriormente avançadas em favor de uma origem compósita, nomeadamente a consideração separada das quatro sequências que tratam de Afonso Henriques (a morte do conde Henrique, as lutas contra dona Teresa e Afonso VII, o Bispo Negro e o desastre de Badajoz), não invocam argumentos suficientes para negar a coerência global da narrativa. Pelo contrário, diz o autor; os indícios de unidade redactorial prevalecem sobre os que apontam para a origem independente das quatro sequências. Não vai até ao ponto de admitir essa possibilidade, mas o que lhe interessa é demonstrar a unidade e coerência da obra no seu conjunto. Tendo sublinhado os pontos em que me parece que a obra de Filipe Moreira constitui um efectivo avanço em relação ao estado de conhecimentos anterior, não deixarei, porém, de manifestar a minha discordância em alguns pontos, ou as minhas dúvidas acerca de problemas que me parecem insuficientemente esclarecidos. Comecemos pelos últimos.
A tese de António José Saraiva a respeito do carácter épico do texto que intitulou Gesta de Afonso Henriques está hoje desacreditada. Como autor do artigo a ele consagrado no Dicionário de Literatura Medieval Galega e Portuguesa, devo lembrar que já nessa altura manifestava dúvidas a respeito de tal classificação, remetendo todavia o leitor para a leitura da obra de Saraiva. Na verdade, durante as décadas de 1920 a 1950 a autoridade de Ramón Menéndez Pidal acerca da literatura épica castelhana e da sua relação com a historiografia hispânica medieval exerciam tal fascínio sobre os medievalistas, que se procuravam por toda a parte vestígios de cantares de gesta. Sabe-se hoje, porém, que muitas narrativas medievais recolhidas por obras de outros géneros têm origens muito variadas. Aceite-se, pois, sem dificuldade, a classificação da estória de Afonso Henriques como simples narrativa.  Mas não basta a classificação deste texto para desprezar o problema da sua origem. Com efeito, nem todos os argumentos de Filipe Moreira para o secundarizar me parecem justos. As reminiscências das lutas entre clero de simpatia ou origem moçárabe contra o clero de observância romana, institucionalmente prolongadas pelas violentas controvérsias entre a comunidade de Santa Cruz, simpatizante do primeiro, e os cónegos da Sé, representantes do segundo, criaram em Coimbra um ambiente que não é lícito ignorar se se pretende conhecer o sentido do episódio. Todavia, o teor da estória tal como é relatada na Primeira Crónica Portuguesa (não hesito em adoptar este título) manifesta uma origem não clerical; o seu autor não parece conhecer suficientemente as instituições eclesiásticas para utilizar o vocabulário adequado, e interpreta o conflito dando um sentido simbólico aos pormenores escolhidos. Mas seria um anacronismo atribuir-lhe um pensamento anticlerical. Neste ponto discordo por completo da opinião de Filipe Moreira. O papel negativo cabe ao papa e aos seus representantes; não ao clero português ou coimbrão no seu conjunto. Também não me parece de modo algum que a escolha desta narrativa se destine, na mente do redactor, a completar uma definição da autoridade do rei para com a primeira das três ordens. Com efeito, na opinião de Filipe Moreira, depois do episódio em que o conde Henrique, moribundo, recomenda ao filho que seja companheiro a filhos d’algo e faça honra aos concelhos, fora definida a sua autoridade para com a segunda e a terceira das três ordens; faltaria marcar a sua supremacia para com o clero. Acontece, porém, que não consigo descobrir nenhum vestígio de tipo redactorial para sustentar tal tese. Pelo contrário: se não me parece haver dúvida que o papel do rei para com os nobres e os concelhos, tal como é definido no princípio da primeira sequência, se inspira no princípio de que deve haver uma verdadeira partilha de funções e um exercício do poder condicionado pelos privilégios dos nobres e a autonomia relativa dos concelhos (e não numa autoridade absoluta do rei sobre eles), já o relato do seu comportamento para com o clero tem um sentido muito diferente. Com efeito, o narrador, atribui a Afonso a plena autoridade (isto é exercida sem prévia consulta dos representantes da primeira ordem) sobre a escolha do bispo, e não hesita em ameaçar de morte o legado papal, reclamando assim uma posição acima do próprio papa. Não há, pois, nenhum paralelismo entre o sentido da primeira sequência do texto e o sentido da terceira. O conceito de poder régio é completamente diferente nas duas secções do texto. Para mim é, pois, evidente que a Crónica se baseou em narrativas diferentes e procedentes de meios socais distintos». In José Mattoso, A Primeira Crónica Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Número 6, 2009, Instituto de Estudos Medievais, Lisboa, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT