sexta-feira, 4 de março de 2016

A Filha do Papa. Luís Miguel Rocha. «Úrsula, a sua quinta assistente social designada pelo estado, mudou tudo. A rechonchuda funcionária pública tornou-se, ela própria, a sua nona família de acolhimento quando ele tinha 10 anos»

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«(…) Lucarelli pousou a sineta em cima da cómoda. Se precisar de si chamarei pelo seu nome, Bernarda, declarou o prelado, virando-lhe as costas, em jeito de resolução sancionada e ractificada, sem direito a apelo. Ninguém deve entrar nos aposentos, a não ser que eu o solicite, entendido? Sim, reverendo monsenhor. Necessita de mais alguma coisa?, perguntou a irmã antes de deixar os aposentos. Ele já tinha aberto a mala e retirado algumas vestimentas que ia pousando na beira da cama. Confiante, organizado e metódico, acrescentou a irmã à lista de características do enviado de Roma que estava a elaborar mentalmente. Observar tudo. Sim, disse, sem olhar para ela nem parar o que estava fazer. Pode, por favor, providenciar-me um fato impermeável e esquis?

Matteo Bonfiglioli nunca conhecera os pais. Não que isso importasse muito, ao fim de quase trinta anos. Habituara-se à ideia desde muito cedo, quando se apercebeu que só podia depender de si mesmo e de mais ninguém. As várias famílias de acolhimento haviam-no demonstrado empiricamente. Os inúmeros pais extremosos que tivera não se coibiram de manifestar o seu afecto com o cinto, e até um padre se dignou exibir o seu amor por ele com uma vergasta numa mão enquanto segurava as calças desapertadas com a outra. Aos dez anos já tinha passado por oito funcionais, estáveis e afectuosas famílias de acolhimento e conhecido quatro assistentes sociais. Só podia ser do feitio irreverente do rapaz que não se acobardava ao cinto nem à vergasta, nem a nenhum outro acessório educador. E depois, aquela mania de meter-se, feito herói de palmo e meio, onde não era chamado, e de estar sempre pronto para defender os irmãos que iam e vinham como os turistas de passagem, e que, a maior parte das vezes, nem aqueciam a cama. Os olhares amedrontados, condoídos, na esperança que os novos tutores gostassem deles, tentando retardar ao máximo o primeiro berro do pai, a primeira surra da mãe. Matteo sabia que era tempo perdido, e a inevitabilidade de o cinto não se manter preso às calças tão certa como a morte. Pareciam escolhidos a dedo, e todos, sem excepção, usavam cinto.
Úrsula, a sua quinta assistente social designada pelo estado, mudou tudo. A rechonchuda funcionária pública tornou-se, ela própria, a sua nona família de acolhimento quando ele tinha 10 anos, só ela e ele, sem cintos nem más palavras, nem calças desapertadas, nem vergastas. Isto é uma relação para a vida inteira, Matteo, avisou-o no primeiro dia. Não te vou devolver ao estado, aconteça o que acontecer, faças o que fizeres. Isto pode correr muito bem ou muito mal. Portanto, o melhor é que nos dêmos bem desde o início. Pela primeira vez, alguém lhe ditava regras com algum sentido. Havia horas para estudar, para brincar, para ver televisão, para comer, para dormir. Esperava-se dele que tivesse aproveitamento escolar, que evitasse altercações patetas e inúteis, dentro e fora da escola, que cumprisse as leis civis em vigor, sempre. Podia ser criança mas não piegas, tinha 10 anos, não era um bebé mimado e não podia, em situação alguma, tratá-la por mãe. Desde que fossem cumpridos estes preceitos não haveria problemas, e Matteo não era rapaz para procurá-los deliberadamente, especialmente se não houvesse razão para isso. Nunca se apercebera que Úrsula tivesse qualquer relação com alguém. Viu um homem de meia-idade dar-lhe um envelope uma vez que chegou mais cedo da escola, e acabou por vê-lo mais tarde, mais duas ou três vezes, mas não lhe parecia nada sério dada a rapidez com que ele ia embora.
Dez anos depois, Úrsula arranjou-lhe uma bolsa que lhe financiou integralmente o curso de Línguas e Literatura na Università Degli Studi. Um cancro nos intestinos levou-a antes da láurea final da licenciatura. Foi a primeira vez que Matteo chorou por alguém. Por vezes pensava que decerto algum ser, algures no universo, puxava cordelinhos invisíveis que faziam aparecer as pessoas certas às desorientadas, e durante o tempo necessário para fazer a diferença. A Úrsula das regras quase militares, das leis, das exigências, da falta de instinto maternal, aquela a quem não podia, em situação alguma, chamar mãe ainda teve um último gesto: deixara-lhe em testamento a casa em que viviam e uma conta bancária que a todos os dias trinta de cada mês crescia mil e quinhentos euros. Perguntou ao gerente do banco de onde vinha aquele dinheiro todos os meses e ele respondeu-lhe que se tratava de uma poupança que Úrsula lhe deixara.
Gostasse ou não, fora a mãe dele e sê-lo-ia sempre». In Luís Miguel Rocha, A Filha do Papa, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-004-411-2.

Cortesia de PEditora/JDACT