jdact
Troyes,
França. Verão de 4851 (1091 D. C.)
«(…)
Era evidente que o seu desprendido marido não podia dar-se ao trabalho de lhe
escrever para lhe comunicar que se atrasara. Não lhe teria passado pela cabeça
o quanto ela se preocupava? Rachel começou a cerrar os punhos, mas deteve-se
antes de amarrotar aquele valioso documento que era o seu get condicional. Que uma
praga se abata sobre Eliezer! Não fazia a menor ideia do que era, para ela,
passar dias e dias, ansiosa, e longas noites solitárias, a perguntar a si
própria o que poderia ter-lhe acontecido. Seria bem feito para Eliezer se ela
se dirigisse ao beit din, na quinta-feira,
seis meses e um dia depois de ele haver partido, apresentasse o seu get condicional e ficasse divorciada.
Teria de aguardar mais três meses antes de voltar a casar-se, e, por essa
altura, já Eliezer certamente estaria de regresso a casa. Então, seria a vez de
ele esperar e sofrer, enquanto Rachel se decidisse se deveriam ou não reconciliar-se.
Aquela ideia era tentadora, mas atrever-se-ia ela a concretizá-la? Voltou a respirar
fundo. Provavelmente, Eliezer estava à espera da chegada de um barco que trazia
a sua mercadoria, ou a negociar um contrato com alguém que podia estar a
aproveitar-se do seu desejo em apressar-se. Rachel podia pensar numa dúzia de
motivos legítimos para o facto de Eliezer ainda não haver regressado. Olhou,
com expressão carregada, para o papel que tinha na mão. Quando um marido
decente e carinhoso sabe que vai demorar-se, faz um esforço para informar a
mulher. De novo, a fúria a invadiu, ao imaginar Eliezer a tratar de negócios no
Magrebe, talvez a marcar encontro com uma meretriz da região que servisse à
mesa, sem pensar sequer na sua fiel esposa, que tanto se atormentava em casa.
Contudo,
podia haver um outro motivo para aquele atraso, motivo esse que a fazia
estremecer só de pensar nele. E se algo horrível o tivesse detido, algo que o
incapacitara de lhe escrever? De súbito, Rachel pensou em Shemiah e em Asher, o
pai e o irmão de Eliezer, arrastados pela corrente tumultuosa de um rio,
durante as cheias, há seis anos, depois de o seu barco se haver virado, durante
uma viagem mercantil de rotina a Praga. Por
favor, mon Dieu, protege o meu marido
e trá-lo de volta para mim, são e salvo. Talvez pressentindo a sua agitação,
a pequena Rivka começou a mexer-se no berço. Rachel apressou-se a guardar
novamente o get na arca e pegou ao
colo na filha de um ano de idade. A bebé agarrou com as mãozinhas a sua camisa
à procura dos seios, e Rachel deitou-se na cama para a amamentar. Enquanto
afagava a sua cabecinha coberta de caracóis pretos, disse a si mesma que tinha
de ser paciente. Eliezer nunca faltara à inauguração da Feira de Verão. Com
certeza estaria de regresso antes do final da semana. E quando aparecesse, Rachel
faria tudo para que ele nunca mais se atrasasse sem a informar devidamente.
Soltou um leve suspiro. Pára de te atormentares por causa de Eliezer, ordenou a
si própria. Pensa em como os sorrisos da tua filha te deliciam, no orgulho que
sentes por Shemiah, de cinco anos, estar a aprender a ler tão depressa a Torá.
Imagina os preços que irás conseguir pelas jóias que obtiveste através da tua
casa de penhores. Contudo, nenhum daqueles pensamentos agradáveis impedia de se
inquietar com o que teria acontecido ao marido.
Eliezer
acordou com o chilrear de pássaros acima dele, e agradeceu aos céus por ainda
estar vivo. Podia sentir que algo estava a ser cozinhado e o seu estômago
contraiu-se de dor. Além do mais, tinha uma cãibra na perna direita, mas,
quanto tentou esticá-la, percebeu que não podia mexer-se. Tinham-no amarrado
ainda mais do que o habitual, na noite anterior. Há quantos dias estava ali
prisioneiro, amarrado a uma árvore, algures na Floresta da Borgonha? Há uma
semana, pelo menos. Quanto tempo se passaria até que algum mercador passasse
pela zona ou um grupo de judeus pudesse resgatá-lo?» In Maggie Anton, 2009, Rachel, As
Filhas de Rashi, tradução de Catarina e Joel Lima, Círculo de Leitores, 2012,
ISBN 978-972-42-4776-2.
Cortesia
de CLeitores/JDACT