domingo, 1 de novembro de 2015

A Miragem da Antiga Lusitânia. João Paulo O. Costa. «O monarca alquebrado mantém a autoridade régia, mas Sancho I, o herdeiro, passa a intervir directamente na governação e surge-nos desde então mencionado na documentação como “pariter”, em parceria com o pai»

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Maio. 1169
«No terceiro quartel do século XII, o mapa político da Hispânia estava em construção, e a afirmação final dos reinos de Portugal, Castela, Aragão e Navarra, que se verificou a partir de 1230, não era então um dado adquirido. Na luta contra os muçulmanos, os príncipes cristãos buscavam a dilatação dos seus territórios para sul, ao mesmo tempo que espreitavam os vizinhos, tentando adivinhar-lhes os rumos das conquistas, procurando saber o momento em que fraquejariam para abocanhar as terras de fronteiras instáveis e talhadas a golpes de espada, e cuidando de evitar que o vizinho se fortalecesse demasiadamente, nem que para isso fosse necessária uma aliança com o mouro. Em 1158, os reis Fernando II de Leão e Sancho III de Castela, ambos filhos de Afonso VII, haviam assinado o Tratado de Sahagún, em que acordavam os rumos da Reconquista, prevendo que as terras do Alentejo e do Algarve ficavam reservadas para a monarquia leonesa. O enclausuramento do reino de Portugal aos territórios entre o Minho e o Tejo seria o primeiro passo dos leoneses para recuperarem a soberania sobre as terras portucalenses, que lhes haviam escapado apenas há quinze anos. A independência lusitana ainda não passava de um sucesso efémero, aos olhos dos seus vizinhos e rivais.
No entanto, as movimentações militares no Oeste peninsular contrariavam os desejos dos dois irmãos, pois Afonso Henriques e os seus cavaleiros pareciam imparáveis. Dominada a linha do Tejo em 1147, avançaram naturalmente para sul; encontraram forte resistência em Alcácer do Sal, mas depois da sua conquista, em 1160, seguiram-se novas vitórias que iam gerando um novo mapa político. O rei beneficiou então da acção particular do célebre Geraldo Sem-Pavor, que investiu para leste e para sul, tendo tomado vários castelos que colocou sob a autoridade portuguesa. Em 1162 capturou Beja, e em 1165 e1166 ocupou Trujillo, Évora, Cáceres, Serpa, Moura e Alconchel. Assim, o reino de Portugal parecia configurar-se cada vez mais com a antiga província da Lusitânia do Império Romano, que tivera a sua sede em Mérida. A tomada destas posições permitia sonhar com a incorporação de muitas outras terras a leste do Guadiana na monarquia portuguesa, e para consolidar essa linha de rumo faltava conquistar Badajoz.
Assim, o avanço para sueste da hoste lusitana representava a situação oposta à que fora prevista pelo Tratado de Sahagún, pois era a monarquia leonesa que via o seu avanço para sul ser tolhido pelo alastramento das conquistas portuguesas. Fernando II de Leão evitara a ocupação permanente de Salamanca por Afonso Henriques, em 1163, promovera o repovoamento de Cidade Rodrigo, desde 1161, e ocupara Alcântara em 1166, mas gastara boa parte das suas energias, nesses anos, na luta contra Castela, tentando tirar partido da menoridade de seu sobrinho, o rei Afonso VIII, o que facilitou o avanço português pelas terras dos mouros. Em 1169, Geraldo Sem-Pavor e Afonso Henriques congregaram forças para o golpe final, que lhes abriria as portas da Andaluzia, e atacaram Badajoz. Este era o último bastião islamita na região, depois de todos os castelos em seu redor terem caído em mãos lusitanas, mas o leonês percebeu o perigo; no ano anterior enviara um emissário a Sevilha para acertar os moldes de uma aliança antiportuguesa, e quando Badajoz foi atacada acorreu em auxílio dos aliados.
A 3 de Maio, as forças portuguesas entraram no casario da cidade, mas os últimos mouros acantonaram-se na alcáçova, e resistiram até à chegada dos reforços cristãos. Quando a hoste leonesa entrou pela medina, Afonso Henriques viu-se forçado a retirar, e na cavalgada precipitada o monarca português sofreu um acidente e partiu uma perna; ainda escapou sob a escolta da sua guarda, mas foi capturado poucas léguas adiante por cavaleiros leoneses. O monarca foi libertado volvidos dois meses, mas teve de entregar a Fernando II os castelos que detinha na Extremadura e na Galiza. Graças à intervenção de Fernando II, Badajoz permaneceria sob governo muçulmano mais sessenta anos e Leão recuperava o contacto com a mourama na sua fronteira meridional; o reino de Portugal consolidava por então o domínio do Minho, de Trás-os-Montes e das Beiras, mais o vale do Tejo, e guardava para si a ocupação dos territórios além do Tejo, mas jamais voltaria a tentar a restauração da velha Lusitânia. A estrela vitoriosa d´el-rei Afonso Henriques apagou-se no desastre de 1169, e o velho rei abandonou as lides guerreiras, ao mesmo tempo que a sul se formava nova vaga islamita sob a égide dos Almóadas, que pouco depois se abateu brutalmente sobre a cristandade peninsular. Nascido sob um ímpeto conquistador, Portugal iria iniciar uma nova conjuntura estratégica, marcada pela capacidade de resistir. Iniciava então o primeiro teste de sobrevivência. Sobrevivência política e sobrevivência dinástica. O monarca alquebrado mantém a autoridade régia, mas Sancho I, o herdeiro, passa a intervir directamente na governação e surge-nos desde então mencionado na documentação como pariter, em parceria com o pai». In João Paulo Oliveira Costa, Episódios da Monarquia Portuguesa, Círculo de Leitores, Temas e Debates, 2013, ISBN 978-989-644-248-4.

Cortesia de CL/TDebates/JDACT