sábado, 31 de outubro de 2015

No 31. Cartas de Amor aos Mortos. Ava Dellaira. «Mas a questão é que May era linda; tinha aquele tipo de beleza que marca as pessoas. O seu cabelo era sedoso e ela parecia pertencer a um mundo melhor, então a roupa fazia sentido»

jdact e cortesia de wikipedia

«Querido Kurt Cobain
Hoje a sra. Buster passou a nossa primeira tarefa de inglês: escrever uma carta para uma pessoa que já morreu. Como se a carta pudesse chegar ao céu ou a uma agência de correio dos fantasmas. Acho que ela queria que a gente escrevesse para um ex-presidente ou alguém do tipo, mas preciso conversar com alguém. Eu não poderia conversar com um presidente. Mas posso conversar com você. Gostaria que você me dissesse onde está e por que foi embora. Você era o músico favorito da minha irmã, May. Desde que ela morreu, tem sido difícil ser eu mesma, porque não sei exactamente quem sou. Mas, agora que estou no ensino médio, preciso descobrir depressa. Ou então vou me dar muito mal. As únicas coisas que sei sobre o ensino médio aprendi com May. No meu primeiro dia, fui até ao guarda-roupa dela e encontrei a roupa que ela usou no primeiro dia dela, uma saia plissada e um suéter de caxemira rosa e costurou o símbolo do Nirvana, a carinha com X nos olhos. Mas a questão é que May era linda; tinha aquele tipo de beleza que marca as pessoas. O seu cabelo era sedoso e ela parecia pertencer a um mundo melhor, então a roupa fazia sentido. Eu a vesti e fiquei olhando-me no espelho dela, tentando sentir que pertencia a algum mundo, mas, na verdade, parecia que eu estava fantasiada. Então pus minha roupa preferida do fundamental, um macacão jeans com uma camiseta de manga comprida e brincos de argola. Quando pisei no corredor do colégio West Mesa, senti imediatamente que tinha sido um erro. Em seguida, descobri que não se deve levar almoço de casa para a escola. O certo é comprar pizza e um pacote de bolachas recheadas, ou então nem comer. Minha tia Amy, com quem moro semana sim, semana não, faz sanduíches de alface com maionese no pão de hambúrguer, porque era o que gostávamos de comer, May e eu, quando éramos pequenas. Antes eu tinha uma família normal. Quer dizer, não era perfeita, mas éramos minha mãe, meu pai, May e eu. Parece que já faz tanto tempo. Mas a tia Amy está-se esforçando muito e gosta tanto de preparar os sanduíches que não consigo explicar que não são para o ensino médio. Então entro na casa-de-banho feminino, como o sanduíche o mais rápido que posso e coloco o embrulho no lixo. Faz uma semana que as aulas começaram, e ainda não conheço ninguém. As colegas da minha antiga escola foram para o colégio Sandia, onde May estudava. Eu não queria ninguém sentindo pena de mim nem fazendo perguntas que eu não saberia responder, então fui para West Mesa, que fica no bairro da tia Amy. Um recomeço, acho. Como não quero passar os quarenta e três minutos de almoço na casa-de-banho, quando termino a sanduíche, vou para o pátio e sento-me perto da cerca. Fico invisível e só observo. As folhas das árvores estão começando a cair, mas o ar ainda está tão denso que mal dá para respirar. Gosto de observar um garoto em especial, que descobri, chama-se Sky. Ele sempre usa jaqueta de couro, mesmo que o verão mal tenha terminado. Quando olho para Sky lembro que o ar não é apenas algo que existe, mas que se respira. Mesmo que esteja do outro lado do pátio, consigo ver o peito dele se movendo.
Não sei por quê, mas, nesse lugar cheio de desconhecidos, fico feliz que Sky e eu estejamos respirando o mesmo ar. O mesmo ar que você respirou. O mesmo ar que May respirou. Às vezes as suas músicas dão a impressão de que existia muita coisa dentro de ti. Talvez nem tenha conseguido colocar tudo para fora. Talvez tenha sido por isso que morreu. Como se tivesse implodido. Acho que não estou fazendo a tarefa direito. Talvez eu tente de novo mais tarde. Beijos, Laurel». In Ava Dellaira, Cartas de Amor aos Mortos, tradução de Alyne Azuma, Editora Seguinte (o Selo Jovem da Companhia das Letras), 2014, ISBN 978-856-576-541-1.

Cortesia da ESeguinte/JDACT