quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Os Sensos Incomuns. Maria Isabel Barreno. «Acordou na manhã seguinte com sensação de enigma. Recordou vagamente o sonho, encolheu os ombros. Não há dúvida de que ela estava bem descrita, no princípio, para assim entrar, tão perfeita, nos meus sonhos»

Cortesia wikipedia e jdact

A Personagem
«Começou a ler o livro num sábado de manhã. Um amigo seu tinha-lho recomendado. Belíssimo, dissera, há uma personagem feminina comovente, linda, tão misteriosa que é uma presença quase ténue, no livro, um fio de existência feito só de indícios, e de súbito reparamos que a personagem se instalou em nós, no coração, no ar que respiramos. Como se tivesse saltado das páginas do livro, literalmente, repetia o amigo, como se tivesse saído do livro e o seu destino viesse fundir-se ao nosso quotidiano. Ele confiava na opinião daquele amigo. Gostava de passar os fins-de-semana de Inverno em casa, estirado no sofá da sala, lendo. Por isso sexta-feira à tarde foi comprar o livro antevendo com volúpia todo o desenrolar do processo: sair da livraria sentindo o livro nas mãos (era absolutamente impossível pedir emprestado um livro quando se tratava de saboreá-lo), desfazer o embrulho em casa, devagar, cheirar o livro (adorava o cheiro dos livros novos), mirar a capa dum lado e do outro, ler as badanas, deixar o livro pousado em cima da mesa da sala enquanto ia à cozinha preparar e comer o seu jantar (ele vivia sozinho); voltar à sala, olhar o livro de longe, aguçando o desejo; quase ceder à tentação de começar imediatamente a ler; resistir, aguçar ainda mais o desejo, decidir não, hoje à noite vou sair, amanhã sim. E o sábado chegou com uma cor amarela, cor da alegria, apesar de estar um dia chuvoso.
Começou a ler o livro sábado de manhã. Leu as primeiras vinte páginas com avidez. Sim aí estava ela, a tal comovente e ténue personagem feminina, fio secreto de todo o enredo. Era uma obra de arte, finamente cinzelada nas entrelinhas, entrevista, prometida. Prometido o encontro, leu mais vinte páginas, a inevitável desvelação não se anunciava mais próxima. A mulher entrara na sua pele como a mais insidiosa das amantes, mas permanecia feita só de cecantes indícios, ameaçadoramente esfingica. As páginas seguintes foram-se tomando progressivamente torturantes, cansativas, frustrantes. Corpo feito de entrelinhas, a mulher nada oferecia, revelava-se, recusava-se. Um jogo, infindo de coqueteria, um baixar de olhos, de pálpebras. Nada acontecera, e já a nostalgia o habitava: ela passara, e não viria. Deixou o livro na página oitenta, a meio da tarde de sábado, e foi ao cinema. Escolheu um filme violento, vingativo. Saiu indisposto com tantas imagens óbvias, achando o mundo estúpido, azedo consigo próprio. Telefonou a dois ou três amigos, jantou com eles. Riram e falaram de mulheres, um pouco de futebol, um pouco de política. Separaram-se polidamente, prometendo próximos e entretidos encontros. Na despedida ele pensou: se fôssemos homens da anterior geração, agora iríamos às pu…, juntos, mas nós nem isso sabemos fazer.
Depois envergonhou-se de tal pensamento, honestamente achava que mais valia encobrir tristezas com desconsolos polidos do que com as alarvidades antigas. Recolheu a casa, ouviu um pouco de música, deitou-se cedo. Pensou que se zangara com a namorada há um mês, que ainda não arranjara outra, que tinha de resolver o assunto, e adormeceu. E foi então que a viu, completa. Ela estava à sua frente, transparente e nua, livre das revelações textuais. Depois adensou-se seu corpo, depois vieram as vestes. Mas ela sorria sempre, estendia-lhe os braços e dizia-lhe: completa o meu destino.
Acordou na manhã seguinte com sensação de enigma. Recordou vagamente o sonho, encolheu os ombros. Não há dúvida de que ela estava bem descrita, no princípio, disse para si próprio, para assim entrar, tão perfeita, nos meus sonhos. Passou o domingo entregue a coisas várias, daquelas minudências que nem se dizem. À noite leu outro livro, que arrastava havia semanas, sem entusiasmos mas com suficiente persistência. De novo adormeceu cedo, pensando em arranjar namorada, talvez reconciliar-se com a anterior. E de novo ela, a mulher anunciada no livro, promessa frustrada, apareceu no seu sonho: de novo completa, e transparente e nua, bela, de novo pedindo, completa meu destino.
E os dias sucederam-se, as noites também, iguais. O sonho voltava, ela voltava, incólume. Podia repetir-se agora, no sonho, sem rasgo nem gasto, porque perfeita. Chegou o sábado, dia de descanso, ele resolveu cumpri-lo. Refastelou-se na mesma poltrona de há sete dias atrás, abriu o livro na página oitenta, seguiu o rasto da mulher até ao final. Ela seguia, finamente cinzelada nas entrelinhas, fio do enredo, entrevista como sol e sombra nas ramadas de Verão. Só no final se tomava sarcástica. Nada mais. E todo o texto se desmoronava à sua volta. Era uma vitória entre ruínas. Nessa noite de sábado para domingo foi a sua última aparição. Lenta e nua, consistente e bela, ela sorriu o seu adeus e disse: obrigado. Desapareceu para sempre. Mas a partir dai ele nunca mais foi capaz de deixar um livro a meio: os suspiros das personagens inacabadas eram suficientes para guiá-lo até ao fim». In Maria Isabel Barreno, Os Sensos Incomuns, 1993, colecção Campo da Palavra, Grande Prémio do Conto, Editorial Caminho, 2008, ISBN 978-972-210-886-7.

Cortesia ECaminho/JDACT