terça-feira, 6 de outubro de 2015

Reia Sílvia. As Mulheres que Fizeram Roma. Carla Quevedo. «As vestais não estavam sob a ‘patria potestas’, mas também não eram autónomas. Embora não fossem propriedade de ninguém, obedeciam ao ‘pontifex maximus’»

Reia Silvia, johnleech, 1850 
jdact

«É campónio demais aquele que se sente magoado por uma mulher que o engana e não conhece o bastante os costumes da Urbe, onde não nasceram sem engano os filhos de Marte, Rómulo, filho de Ília, e o filho de Ília, Remo». In Ovídio

Reia Sílvia (ca. 753 a. C.)
«(…) Apesar de Numitor ser mais velho e o digno sucessor do trono, Amúlio era mais rico. A riqueza tornou-o mais forte e não tardou a que usurpasse o trono ao irmão, matando-lhe os filhos homens. No entanto, apesar de afastadas as ameaças ao poder que adquirira à força, Amúlio não dormia descansado. Vivia em constante sobressalto, com pavor de ser morto por algum parente vingativo. O perigo de tal acontecer não estava no presente, que domesticara com o crime, mas no futuro de uma descendência imprevisível. Numitor tinha uma filha de nome Ília, um nome que nos remete de imediato para Ílion, que significa Tróia. Mas chamavam à rapariga Reia Sílvia, que à época estava em idade madura para casar. Ora, a mera hipótese de a sobrinha dar à luz a prole que não hesitaria em vingar o pai e o irmão atormentava o espírito fraco de Amúlio. Para ele, Reia Sílvia era, como numa canção de Stephen Sondheime, a formiga no piquenique, que à primeira vista parecia insignificante, mas que existia com o único propósito de lhe estragar a festa. Para deixar de vez de temer pela vida, Amúlio decidiu oferecer a rapariga a Vesta. Não seria extravagante, visto que as raparigas oriundas de famílias senatoriais eram as únicas candidatas elegíveis à função de sacerdotisa do templo. Mas a oferta fazia parte de um plano maior. Fingindo dignificar Reia Sílvia com a honra de assistir à deusa, condenava-a à castidade forçada. Tudo para viver em paz.
A entrega do corpo e da alma à deusa Vesta não era o pior que podia acontecer a uma mulher na Antiguidade. Recrutadas desde muito cedo, entre os seis e os dez anos, a virtude conferia a estas mulheres um poder de intervenção na vida pública. As vestais tinham mais liberdade de movimentos do que as mulheres comuns e eram livres de andar desacompanhadas na rua, desde que fossem transportadas em liteiras. Passar por baixo de uma liteira que transportava uma vestal era um acto punível com a morte. As vestais gozavam de um estatuto legal especial que as diferenciava das mulheres casadas e das que eram ainda apenas filhas. Qualquer homem casado segundo a tradição romana tinha um poder sobre os seus descendentes biológicos ou adoptados, que por sua vez não tinham direito à propriedade. As decisões sobre as suas vidas eram tomadas pelo pater familias, que exercia a patria potestas sobre os que viviam debaixo do seu tecto, quer fossem familiares ou escravos.
As vestais não estavam sob a patria potestas, mas também não eram completamente autónomas. Embora não fossem propriedade de ninguém, obedeciam ao pontifex maximus. O sacerdote supremo não tinha o mesmo estatuto legal do pater familias, mas estava nas suas mãos decidir se a vestal quebrara ou não a promessa sagrada de castidade, bem como executar a pena de morte, no caso de se confirmar um atentado contra Vesta e, por consequência, contra Roma. O poder sobre a vestal era ele mesmo ambíguo, tal como era o estatuto da própria virgem. A vestal não era casada, mas vestia a túnica até aos pés ou a stola. Nunca seria uma noiva, mas usava bandas de linho no cabelo. Não era um homem, mas celebrava cerimónias religiosas e acompanhava os senadores nos jogos.
A entrega à deusa Vesta também trazia obrigações. As vestais eram as guardiãs do fogo de Roma, cuja chama não podia esmorecer nem ser apagada. O fogo tinha um significado religioso, aliás comum a muitas culturas, de união entre deuses e humanos. Lidar com o fogo sagrado era uma tarefa que exigia dedicação plena e imaculabilidade. A interferência de qualquer impureza na execução dos rituais desequilibrava a união entre humanos e deuses e colocava a cidade em perigo. O voto de castidade tinha de ser cumprido durante trinta anos. Os primeiros dez seriam dedicados à aprendizagem das funções da sacerdotisa de Vesta no templo, a segunda década à execução das tarefas e a última à passagem de testemunho, antes do seu regresso à vida civil, numa altura a que chamamos hoje a meia-idade. A vida nem sempre era pacífica para as vestais. O voto de castidade que cumpriam era a sua maior força e ao mesmo tempo a sua maior fragilidade. A mera suspeita de incestus, que tem o significado original de impuro, manchado ou sacrílego uma intrusão na castidade, podia ser suficiente para condenar a vestal à morte. Não havia nenhuma estátua da deusa no templo, apenas a chama que as vestais tinham o dever de manter viva. Além da vigilância do fogo sagrado, a confecção de uma refeição salgada, mola salsa, usada nos sacrifícios públicos, fazia parte das tarefas diárias da sacerdotisa. Mas a atenção ao fogo do templo era de importância vital.
O enfraquecimento da chama era interpretado como um sinal de possível quebra da promessa de castidade. A chama a arder simbolizava a sexualidade protegida, nunca consumada, da virgem. A chama apagada indicava a sua impureza. E a impureza era perigosa para a cidade. Segundo uma lei mais antiga do que a própria Reia Sílvia, as vestais que quebrassem a promessa de castidade eram enterradas vivas. O castigo, de uma brutalidade inconcebível aos nossos olhos, era entendido como a consequência natural da quebra de dedicação a um modo de vida religioso, em que a castidade era uma condição e um valor. Não esqueçamos que era também por ser virgem que estava livre da patria potestas. Nada restaria de uma vestal que perdesse a virgindade porque ser virgem era precisamente o que justificava a sua existência». In Carla Hilário Quevedo, As Mulheres Que Fizeram Roma, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-626-688-2.

Cortesia EsferaLivros/JDACT