quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Os Meus Amores. Contos e Baladas. Trindade Coelho. «Mente?!, perguntava o outro de lá, assanhado. Como um judeu!, cuspia-lhe da outra banda o Thomé. De modo que para o convencerem, foi preciso afinal leval-o quasi á má cara, chamar-lhe homem de rixas»

Cortesia de wikipedia e jdact

De acordo com o original

«(…) Vamos lá! Vamos lá! As pás, ó tu que cantas? Deixa-me por ahi alguma, que eu depois te ensinarei, ouviste? Que faz ahi no chão esse rasouro, ó coisa? Olha p'r'o que estás a fazer, tu: esses saccos que fiquem bem atados. O criado, que ia abalar com a carrada, perguntou, já de aguilhada no ar, se era preciso mais alguma coisa. Não, pódes ir. Ouves? Lá em casa que tenham a ceia a horas. Avia-te. Ouves, Francisco? Não piques os bois, a carrada é valente. A passo, deixa ir os animaes a passo. Vae-te.
Como o carro chiava, levantou a voz para dizer: Olha, descarrega na tulha do meio. Na tulha do meio, não ouves? Os bois para o lameiro. Mas o Francisco apontou dois saccos que ficavam: seria preciso vir por elles? Não vale a pena, lá irão. E depois, para aquella gente, observou que bem sabia elle quem os levava, aquelles dois saccos... Com mil demonios! Apostar que vocês não adivinham? Elles sabiam lá?... Quem quer podia levar os dois saccos, olhem agora! O Sultão, sabem? O Sultão! Esse é que os levava. E digo-vos então que valia o dobro a colheita, assim me Deus salve! Alguns riram da lembrança. Tinha graça que a scisma do animal não lhe passava nem á mão de Deus Padre! A modos que isso é já mania, ó sr. Thomé? Nisto, porém, o lavrador soltou um oh! de surpreza. Voltaram-se todos que era? Na estrada que a eira dominava, um homem ia passando, a cavallo. Vocês não querem vêr, ó rapazes?!, perguntou o lavrador, fazendo-se pallido. Aquelle burro, hein? Se não é o Sultão é o diabo por elle...
Recordaram: estrella malhada na testa, a mão direita branca... É elle, com um milhão de diabos! Não ha que vêr! E aquelle é o ladrão! E cuspindo nas mãos, e arregaçando mais as mangas da camisa, arrancou, d’um abanão, o cabo d’uma espalhadoura e botou a fugir direito á estrada. Prestes ouviu-se um berreiro, as mulheres do rancho em alarido: Que o mata!, gritavam todas. Ai que o mata! Acudam! Ai a desgraça! Nem a alma lhe deixa! Acudam! Os homens deitaram a correr atraz d’elle, affluia gente de todas as bandas da eira, os cães ladravam. Então, sr. Thomé?, olhe que se perde, sr. Thomé!, diziam-lhe, já agarrados a elle. Largue o cabo, que se desgraça! Tudo se faz a bem, sr. Thomé, largue vossemecê o cabo! Qual bem nem qual diabo! Qual larga? Arreda! Racho-lhe as costellas, mais a vocês, se me não largam! Arreda! E esbracejava furioso, levando-os de roldão, agarrados a elle mais ao cabo. Chegou a ferir um, os outros desanimaram por instantes. Vê, sr. Thomé?! Não via nada, não queria ver cousa nenhuma! Arreda! E n’um rompante de ira, abrindo brecha com um sarilho, de um pulo saltou á estrada, aos tropeções nas pedras que encontrava, mal se equilibrando.
Abaixo!, intimou. Você é um ladrão! Um quê? Um ladrão! É meu esse burro! Hei-de matal-o aqui, seu patife! Deixem-me! Larguem-me! Ha-de ahi ficar estendido, como um cão! E no meio da malta em alvoroço, com a arreata do burro na mão esquerda, e na direita o minacissimo cacete, berrava que o deixassem, que ia tudo razo, com seiscentos milhões de diabos! Seguiu-se altercação, vieram razões de parte a parte, insultos. Já lhe disse que você é um ladrão! Ladrão será você!, tornou-lhe o outro já de pé, avançando de punhos cerrados. E não m’o diga outra vez, que o racho!
Afflictas, algumas mulheres voltavam-se, de mãos postas, para a capellinha proxima, rogando o soccorro da Virgem. O lavrador entrava de tremer como varas verdes, desfigurava-o a raiva, uma saliva muito branca bordejava-lhe os cantos da bocca. Pela camisa rota, via-se-lhe já um pedaço de hombro. Tinham, alfim, conseguido arrancar-lhe o cacete, mas agora esbracejava, punhos no ar sobre aquellas cabeças em desordem. Já, para uns certos do grupo, o homem do burro se desculpava: tinha-o comprado a uns ciganos, fossem lá adivinhar que o burro era roubado... Vê, sr. Thomé?, acudiram logo uns poucos. O homem não tem culpa. E gritavam-lhe aos ouvidos: Não tem culpa! Comprou o animal na boa fé. Vês-ahi está! Mente!, objectava incredulo o Thomé, cada vez mais irado. Mente!
Mente?!, perguntava o outro de lá, assanhado. Como um judeu!, cuspia-lhe da outra banda o Thomé. De modo que para o convencerem, foi preciso afinal leval-o quasi á má cara, chamar-lhe homem de rixas, despropositado, bulhento. Elle então, abrindo os braços como se fosse para nadar, socegou um pouco, amainou, prometteu levar aquillo com paciencia, ás boas. Chegou quasi a pedir desculpa, limpando com a manga branca as bagas das camarinhas. Mas tinha perdido a cabeça, que lhe queriam? Chegou-se por fim a um accordo. Sim, senhores, accommodava-se, mas punha uma condição: largasse elle o burro, e o burro é que havia de resolver... Serve-lhe o contracto? Qual contracto? Mau! Larga-se o burro, você entende?, deixa se o burro ás soltas. Depois, é p’ra onde elle fôr. Se o burro larga p’ra traz, lá p’r’as bandas d’onde você vem... Você d’onde vem? Dos Casaes. Pois ahi está. Se o burro tomar p’r’os Casaes, o burro fica seu... E tomando direito á aldeia, é do sr. Thomé, concluiram alguns do grupo, conciliadores. Nem mais! Serve-lhe assim? Diga se lhe serve assim». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.

Cortesia de PGutenberg/JDACT