sexta-feira, 30 de outubro de 2015

O Crime dos Illuminati. César Vidal. «Depois, com passos inusitadamente firmes, cruzou o espaço que havia entre o fim da escada e a guilhotina. Fez isso com tanta calma, com tanta segurança, com tanta serenidade que qualquer pessoa teria dito que ele passeava por um jardim desfrutando do bom tempo»

Cortesia de wikipedia

Os Filhos da Luz. Paris, 21 de Janeiro de 1793
«(…) O carro parou, finalmente, no meio de um espaço amplo e vazio que rodeava o cadafalso. Sim, amplo e vazio, mas não desprotegido. Estava rodeado por canhões e pessoas portando as mais diferentes armas. Piques (lança antiga), lanças, mosquetes... O condenado desceu do carro. Totalmente enfeitado de branco, levava nas mãos um livrinho que Karl tentou em vão identificar e que acabou achando que fosse um missal, um livro de salmos ou talvez um Novo Testamento. Assim que o réu pisou no chão, três dos carrascos, daqueles carrascos que se vestiam tentando esconder a sua origem burguesa, rodearam-no e fizeram o gesto de lhe tirar a casaca. Com uma dignidade que quase se poderia tocar como se fosse alguma coisa sólida, o homem fez um gesto para afastá-los e se livrou ele mesmo da peça de roupa. Por um momento, os carrascos pareceram totalmente desconcertados. Parecia óbvio que não estavam acostumados à semelhante demonstração de dignidade, principalmente de aprumo, por parte de alguém a quem iriam separar a cabeça do corpo dentro de alguns minutos. No entanto, a atitude deles durou apenas um instante. De maneira imediata, como se impelidos por uma mola, aproximaram-se do réu e tentaram segurá-lo pelos pulsos. Karl não pôde escutar o que o condenado respondeu, mas captou sem dúvida a firmeza, não empertigada mas natural, com que jogou o corpo para trás para impedir que os carrascos fizessem aquilo com ele. O grande filho-da-pu… não se deixa amarrar... Karl escutou uma velha colérica a seu lado resmungar. Se fosse por mim, não iriam colocar a corda propriamente nas mãos. Mas além daquela mulher, que talvez não tivesse tantos anos quanto as infinitas rugas que sulcavam seu rosto aparentavam, ninguém disse nada. Ninguém a não ser os carrascos, que tinham começado a se agitar como se impelidos pelo ventinho que soprava na praça. De repente, um deles levou a mão à boca como se fosse uma trombeta e gritou algo que Karl não chegou a entender. Dois soldados que usavam o gorro frígio vermelho se apressaram em atender o seu chamamento.
Foi então que os olhos de Karl se detiveram, de forma casual, no terceiro sacerdote, aquele que parecia profundamente triste. Pela primeira vez reparou que, quase com toda a certeza, não era francês. Não, ele não era. Seus traços e suas feições indicavam alguém de origem nórdica. Poderia se tratar de um alemão, de um holandês, inclusive de um inglês. Em todo caso, não era uma circunstância tão relevante. O significativo era que ele tinha-se inclinado respeitosamente sobre o condenado e se dirigia a ele num tom que, pelos gestos, poderia ser qualificado de submisso, até de suplicante. Devem ter trocado apenas duas ou três frases, mas foram suficientes para que o réu elevasse os olhos para o céu, sussurrasse alguma coisa e estendesse as mãos. Fez isso justo no momento em que os soldados chegavam perto dele. Ele não poderia garantir, mas Karl teve a impressão de que um dos carrascos amarrava o réu com uma expressão de triunfo insolente, como se fosse a consumação de um longo processo iniciado talvez muitos anos antes. Como se pretendessem sublinhar aquele gesto pleno de significado, os doze tamborileiros localizados ao lado do cadafalso começaram a tocar os seus instrumentos com mais energia e vontade do que arte.
Quando o réu começou a subir a escadinha que levava até à guilhotina, Karl percebeu que os degraus eram inclinados demais. Conteve nessa hora a respiração desejando que o condenado não escorregasse, caísse ou tropeçasse naquela subida sinistra para a morte. Se não aconteceu nada disso, talvez se deva ao facto de que o terceiro sacerdote, o que não parecia francês, agarrou-o pelo braço com a intenção de ajudá-lo. No entanto, aquela colaboração piedosa durou apenas o tempo de subida. Quando os dois atingiram a plataforma sobre a qual a guilhotina repousava, o réu se soltou com um gesto seguro. Depois, com passos inusitadamente firmes, cruzou o espaço que havia entre o fim da escada e a guilhotina. Fez isso com tanta calma, com tanta segurança, com tanta serenidade que qualquer pessoa teria dito que ele passeava por um jardim desfrutando do bom tempo. Achava-se a ponto de alcançar a lâmina, quando parou e olhou para os tamborileiros. À distância em que Karl se encontrava não lhe permitiu captar a carga exacta que o condenado colocou naquela expressão, mas o certo é que as mãos deles ficaram suspensas no ar sem permitir que as baquetas sequer roçassem a pele dos instrumentos.
Morro inocente de todos os crimes de que me acusam. disse o réu com uma voz sossegada, clara e suficientemente forte para que o escutassem com clareza mais além da praça. Perdoo os autores de minha morte, e rogo a Deus para que o sangue que vocês estão prestes a derramar não caia nunca sobre a França. Nem uma palavra, nem um grito, nem um silvo, nem um assobio repercutiram depois que o condenado pronunciou aquelas últimas frases. Por um instante pareceu que o mundo, aquele mundo extraordinariamente convulso, tinha parado, que a terra tinha deixado de girar, que o Sol se fixara no firmamento. Então, uma mão, que parecia saída do nada, cravou-se no antebraço daquele homem vestido de branco e o puxou para a guilhotina. Não houve nenhuma resistência. O réu parecia reconciliado com seu destino como poucos teriam estado. Documente, quase com mansidão, permitiu que dois dos carrascos, que continuavam com os chapéus na cabeça, estendessem-no sob a lâmina. A execução durou alguns instantes mas, ao contrário do que Karl tinha temido, a cabeça não saltou até o chão, mas caiu na cesta. Talvez, pensou, a pequenez da lâmina tenha evitado aquela profanação extra». In César Vidal, O Crime dos Illuminati, 1958, tradução de António Borges, Relume Dumará, Ediouro Publicações S.A., 2006, ISBN 857-316-6491-3.

Cortesia de RDumará/JDACT