terça-feira, 27 de outubro de 2015

Carlota Ângela. Camilo Castelo Branco (1825-1890). «Contou-me algumas passagens de Paulo e Virginia e de Menandro e Laurentina ou os amantes extremosos, que vós não sabeis o que é, mas lembrados estareis de me perguntardes se eram livros de boa moral»

Cortesia de wikipedia

«Se a natureza formou uma bela criatura, não pode a fortuna precipitá-la num incêndio?» In Shakespeare

«(…) Já agora, diga-se o porquê do cuidadoso recato em que a filha de Norberto Meireles tinha os braços; não era a grossura do pulso, nem a pujança carnosa do antebraço; era uma espessa camada de buço, lanugem, ou cabelo, que a frenética menina cerceava desde os quatorze anos, à tesoura, porque as amigas e parentas a aperreavam, chamando-lhe peluda. Basta de matéria: fica-se sabendo que não se trata de uma mulher formosa; deram-se, porém, os traços principais de Carlota, e são esses os que, na maioria dos casos, fascinam, apaixonam e enlouquecem o homem de trinta anos, gasto de queimar incenso às belezas correctas, a cuja desanimação de comum acordo se chama lindeza. Vejamo-la espiritualmente. Carlota Ângela foi criada com descuidado mimo. Seus pais reviam-se nela, desculpavam-lhe todas as, e fariam-na incorrigível, se a natureza se não corrigisse a si própria. Aos quinze anos, a folgazã menina mudou para triste; de gárrula e traquina que era, fez-se taciturna e indolente. Maneiras de senhora, conversações com pessoas de idade, onde estavam moças; entremeter-se em cousas domésticas, a que a não chamavam; desligar-se das companheiras do colégio, desdenhando a frivolidade de seus passatempos: tal foi a reforma repentina de Carlota Ângela. Alegravam-se os pais, felicitando-se por a não terem contrariado em pequena, contra as admoestações dos parentes, entre os quais havia um tio materno, de cuja calva ela mudava o chinó para a cabeça de um gato maltês, ou em cujos óculos ela bafejava para lhos embaciar. Esta vítima, no auge da sua angústia prognosticara aos pais de Carlota grandes dissabores, consequências funestas da liberdade que davam à condição ferina da moça.
Depois da mudança inesperada, Norberto e Rosália, todos os dias, diziam ao homem dos óculos: Vê como se enganou? Aí a tem agora mais ajuizada e mansa que as meninas criadas debaixo da disciplina e da palmatória... Veremos..., redarguiu o velho advogado, veremos quando ela tiver uma vontade oposta à vossa qual das duas é a que vence. Vontade oposta à nossa!, replicava Norberto. Isso havia de ter que ver! Como acha o mano que ela se possa opor à nossa vontade? Facilmente; e para não ir mais longe, ides vós ter uma ocasião de a experimentar. Qual?, atalharam ambos. Eu vos digo; mas, se Carlota entrar enquanto eu falo dela, fica para amanhã o que hoje vos não disser. Carlota está no seu quarto a ler, e não vem cá tão cedo, disse Rosália. Podes falar à vontade, Joaquim. Quando me notastes a mudança rápida de Carlota, fiquei mais admirado que vós. Entrei a cismar até que ponto se podia aceitar a naturalidade da transfiguração moral, e vim a suspeitar que a causa estava na natureza, mas fora da natureza de Carlota. Ora, eu sei mais do mundo que vós, haveis de conceder-me isto, e vós tendes mais boa fé que eu: fica uma cousa pela outra, e acho que a vossa é bem mais agradável à vida que a minha. Sabeis o que me lembrou? Se Carlota estaria enamorada. Olha que lembrança!, atalhou Rosália. Essa é das suas, doutor!, disse Norberto. Está a sonhar..., deixe-se disso. Seria sonho; disse o doutor severamente, mas já ágora deixem-me contar o sonho até ao fim, e guardem para o remate as admirações. Nesta suspeita, comecei a limpar os óculos para examinar as caras masculinas que entravam aqui, e não achei alguma duvidosa. As vossas relações são pouquíssimas, e nessas não há alguém que possa despertar no coração de Carlota um sentimento novo. Continuei as minhas averiguações fora de casa. Fui às poucas casas onde vós íeis; segui todos os olhares de Carlota, e achei-os sempre indistintos e indiferentes. Descorçoei um pouco; mas não desisti. Um dia do ano passado, estávamos nós no Candal, e passeava eu e ela sózinhos na estrada. Dizia-me a pequena que tinha lido umas novelas de cavalarias, de que gostara muito, posto que não acreditasse nas histórias. Contou-me algumas passagens de Paulo e Virginia e de Menandro e Laurentina ou os amantes extremosos, que vós não sabeis o que é, mas lembrados estareis de me perguntardes se eram livros de boa moral. Notei que a moça, quando me falava no amor das damas e cavaleiros, empregava mais vivacidade do que convinha a uma menina inocente de sentimentos amorosos. Fiz-lhe algumas perguntas com intenção de a surpreender; mas ela jogava comigo tão habilmente, que venceria a partida, se eu não tivesse cinquenta e cinco anos, e não tirasse da hábil escapula o mesmo que tiraria, se ela se deixasse apanhar.
Noutro dia estávamos nós sentados no mirante, conversando em cousas que me não lembram, e vimos aparecer no alto da estrada um cavaleiro. Olhei casualmente para Carlota, e vi-a corada, e inquieta. Disfarcei o reparo, e vi-a erguer-se e voltar as costas para o cavaleiro, dando alguns passos com certo ar de indiferença, e tornou logo, girando entre os dedos uma flor que cortara. O cavaleiro passou e cortejou-me: era meu conhecido. Esperei que ela me perguntasse quem era; nem uma palavra. Perguntei se o conhecia, ergueu os ombros, e fez com os lábios um gesto, que parecia dizer: não sei, nem me importa saber. Noutro dia, fui eu ao Candal, e no alto das Regadas ouvi tropel de cavalo, que me seguia, subindo a calçada. Escondi-me na esquina de uma travessa, e vi passar o cavaleiro: era o mesmo da cortesia. Fui-o seguindo de longe; e, ao chegar à colina de onde se avista o mirante, vi, primeiro, Carlota debruçada sobre o parapeito da varanda, e, depois, o cavaleiro parado debaixo do mirante. Credo!, exclamou Rosália, erguendo-se branca como cera. E esteve até agora calado com isso!, disse Norberto, erguendo-se também. Nada de espantos!, respondeu o bacharel, sem se descompor na cadeira, onde se refestelava, falando com a sua costumada solenidade oratória. Logo se diz quem é o homem; mas há de aqui fazer-se o que eu aconselhar, senão desconfio muito que minha irmã experimente mais cedo do que espera a vontade de Carlota. Escondi-me alguns segundos, e apareci no momento em que vossa filha entregava um ramo ao cavaleiro». In Camilo Castelo Branco (1825-1890), Carlota Ângela, 1874, Projecto Livro Livre, Iba Mendes, livro 585, Poeteiro Editor, Wikipedia, 2014.

Cortesia de PoeteiroE/JDACT