sexta-feira, 9 de outubro de 2015

José de Anchieta em Coimbra. Américo Costa Ramalho. «… de ‘17 de Julho de 1548’, foi a visita que fez o Infante Luís, irmão de João III, que decidira fazer estudar em Coimbra seu filho bastardo “António”, o futuro prior do Crato e efémero rei de Portugal (18º)»

Cortesia de wikipedia

«(…) Um aluno dum centro universitário não se faz apenas pela frequência das aulas. Há todo um conjunto de actividades circum-escolares que contribuem para lhe dar a formação universitária, característica do seu tempo. Ε Coimbra não escapava à regra no século XVI, como não escapa hoje. Assim, o ano de 1548 é particularmente fértil em manifestações académicas. Já me referi, de passagem, à oração de abertura do Colégio das Artes, pronunciada pelo francês Arnaldo Fabrício, em 1548. Se José Anchieta, chegado nesse ano a Coimbra, não pôde ouvi-la, não teria qualquer dificuldade em fazer a sua leitura, pois foi publicada em Coimbra, no mesmo ano, pelos impressores João Barreira e João Alvares. Em 17 de Julho desse ano de 1548, pronunciou o mestre de Retórica João Fernandes um discurso intitulado De celebritate Academiae Conimbricensis Sobre a Fama da Universidade de Coimbra que foi a dissertação de licenciatura de Jorge Alves Osório, meu antigo aluno e hoje professor catedrático da Faculdade de Letras do Porto. Encontra-se publicada esta oração, com tradução e um valioso estudo introdutório do seu tradutor moderno, desde 1967, em edição do Instituto de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras de Coimbra.
A ocasião que propiciou este discurso universitário de 17 de Julho de 1548, foi a visita que fez o Infante Luís, irmão de João III, que decidira fazer estudar em Coimbra seu filho bastardo António, o futuro prior do Crato e efémero rei de Portugal. António estava desde o ano anterior, 1547, no Colégio de São Jerónimo, de onde passaria em 1548 para o Mosteiro de Santa Cruz, vindo a licenciar-se em Artes, em 1551. No seu discurso em Julho de 1548, Mestre João Fernandes desenrolou perante os olhos e ouvidos do irmão do Rei, as glórias do corpo docente universitário, referindo, com maior ou menor extensão, o currículo e os méritos de mestres como os teólogos Afonso Prado, Marcos Romeiro, frei Martinho Ledesma e Paio Rodrigues Vilarinho, os canonistas Martinho Azpilcueta, o doutor Navarro, João Morgovejo e Fábio Arcas Nârnia, os juristas Manuel Costa e Ascânio Escoto, os médicos Rodrigo Reinoso, Francisco Franco e António Luís, o matemático Pedro Nunes, os mestres de Artes, Gaspar Bordalo, Vicente Fabrício Eusébio.
De todos estes, a figura mais prestigiosa era o canonista Doutor Navarro, Martinho Azpilcueta, um basco como o pai de José Anchieta. Ε pergunto a mim mesmo, se uma das razões da vinda de Pedro Nunez, estudante de Cânones, e seu irmão José Anchieta para Coimbra não terá sido exactamente a presença na universidade do famoso canonista Azpilcueta Navarro, tanto mais que não é impossível admitir relações de conhecimento mútuo, dada a comum origem basca. Lembro-me de que, quando estudava (1947-49) em Oxford, acorriam àquela Universidade muitos médicos catalães, atraídos pela reputação dum patrício, professor de Medicina, de nome Trueta, se me não engano.
A terceira oração de 1548, e a essa pode muito bem ter assistido José Anchieta, ou tê-la lido, porque foi publicada de seguida, foi a de Belchior Beliago, em 1 de Outubro de 1548, dia da abertura solene das aulas do ano lectivo de 1548-49. Beliago falou das disciplinas ensinadas na Universidade, pondo em relevo o mérito de cada uma num discurso que intitulou de De Disciplinarum omnium studiis oratio ad uniuersam Academiam (Oração sobre todas as Disciplinas, tradução de Maria Helena Pereira, Porto, 1959). Também Anchieta deve ter passado em Coimbra os momentos mais críticos do Colégio das Artes e do seu corpo docente internacional, subsequentes ao falecimento do principal André Gouveia, em 9 de Junho de 1548. A hora da morte, contava-se em Coimbra, o principal, perguntado se queria um confessor, respondeu soli Deo, a Deus somente. Ε esta resposta fora considerada uma confirmação do espírito protestante de André Gouveia e das tendências reformistas de que ele e alguns dos professores que trouxera de França, vinham sendo acusados.
Hoje, com a publicação dos processos na Inquisição (maldita) de George Buchanan, Diogo Teive e João Costa, e com as informações proporcionadas pela correspondência entre Diogo Gouveia Sénior e o Rei, sabe-se que a intriga vinha sendo montada de longe, tanto no tempo como no espaço. A fonte das maquinações secretas que levariam os três lentes mencionados ao tribunal da Inquisição (maldita) estava em Paris, no velho e rancoroso Diogo Gouveia e no seu ódio incurável ao sobrinho André que abandonara o Colégio de Santa Bárbara na capital francesa de que o tio era principal, para fazer uma carreira coroada de êxito em Bordéus e em Coimbra». In Américo Costa Ramalho, José de Anchieta em Coimbra, Revista Humanitas, volume XLIX, 1997, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT