De acordo com o original
«(…) Meia hora depois
regressava, o Sultão pela arreata, o
Manoel no meio dos saccos, e adeante do Manoel o bello garrafão, sem pinga... Pelo
caminho, a todos o Thomé contava a historia, a rir como um perdido, n’um ah!,
ah!, de gargalhadas sonoras, muito intimas. Colheita rica, sim senhores, um
colheitão! E parando á porta, ainda a mulher se benzia do alto da escada,
mexendo e remexendo o alguidar de barro: Nome do Padre, do Filho, do Espirito
Santo. Ao mesmo tempo que o Thomé, abrindo os braços, respondia reclamando as
sopas: Amen!
Ultima dadiva
Distante do rio apenas
um tiro de bala ficava o horto do José Cosme, bello horto ainda que pequeno,
todo mimoso de fructas e hortaliças, fechado entre velhas paredes musgosas,
atufadas em silvedo, communicando com a estrada por um pequeno portelo mal
seguro. E eis ali quanto ao pobre homem restava dos seus antigos haveres: o
horto, a um canto a nora, e perto da nora, sob a umbella tufada e virente da antiga magnolia gigantesca, a misera
casinhola de alpendre, apenas com uma porta e duas janellitas lateraes mas toda
pittoresca das heras que a revestiam, que lhe pendiam dos beiraes enlaçadas com
as trepadeiras. De modo que na primavera, quando as parasitas abriam serenamente
os seus melindrosos calices sobre esse fundo de verdura reluzente, e a magnolia
toda se toucava de flores fazendo docel á vivenda, aquelle pequeno canto d’horto,
com a sua nora e com a sua agua espelhante e limpida, tomava a feição ingenua
de uma delicadissima tela de paizagista, aquarela deliciosa, alegre e idyllica,
cheia de encantos na poesia rustica da sua simplicidade.
No verão, ás horas de
calor, quando o sol caía a pino sobre a larga paizagem adormecida e turva, e as
arvores da estrada não davam sombra que aliviasse, aquella tranquillidade com
que o José Cosme ressonava sob o alpendre, braços nús e peito nú, o chapeirão
de palha grossa resguardando-lhe a cara, fazia inveja aos que por ali passavam,
cançados e cheios de poeira, flagellados por aquella estiagem inclemente. Ó tio
José!, gritavam-lhe do caminho. Tio José! Ó regalado! Mas os que entendiam de
lavoura, proprietarios e maioraes, esses deixavam dormir o José Cosme e
ficavam-se a admirar o horto. Ora na verdade!... Bello horto, sim senhores! Por
aquellas redondezas não havia outro que se lhe comparasse, tão esmerada era a
sua cultura, tão esmerada e tão completa, pois que de mais a mais nem palmo de
terra ficara inculto. Nas leiras, dispostas com symetria agradavel, verdejavam
cheios de viço, frescos e medrados, legumes de todas as castas, desde a alface
muito tenra, de folhas verde-claras, toda acaçapada no chão humido das regas,
até ás trepadeiras das vagens que enroscadas ascendiam pela basta rodriga de castanho aparada com todo o esmero,
formando massiços de verdura sombria que os casulos esguios dos feijões
crivavam de alto a baixo. Arvores, apenas as precisas para aformosearem o
horto, sem prejudicarem com a sombra a vegetação franca das hortaliças. Mas
todas as que havia eram mimosas de fructas nas estações competentes, cerejas,
peras, maçãs, pecegos mesmo.
Poucas flôres: uma coisa
que todos notavam com estranheza. Mas desde que lhe morrera a mulher mais a
filha, o José Cosme deixara-se de as cultivar, e nos canteiros assim devolutos
tinha semeado repolhos, que por signal vinham enfezados. Só teve o cuidado de
não deixar morrer os goivos. Uma vez por anno, em fins de Maio, colhia-os todos
de uma vez, e ia leval-os em braçado á sepultura rasa das suas defunctas.
Exactamente n’essa tarde tinha elle ido ao cemiterio fazer a fúnebre visita.
Quando se recolheu era já noite. Mal acabou de cear levantou-se bruscamente da
mesa e foi-se para o horto, com uma grande vontade de chorar. Estava nas suas
horas tristes, n’essas horas em que as energias todas da sua alma e até as do
seu corpo vergavam sob o flagello de uma dôr violenta, exacerbada agora pela
saudade dos que lhe tinham morrido... E para maior desgraça fugira-lhe o bem
das lagrimas. De modo que sem esse lenitivo, aquellas medonhas tempestades
custavam o dobro a supportar. Abstracto, n’uma especie de entorpecimento
idiota, percorria sem descanço todas as ruas do horto, cabisbaixo, acabrunhado,
autómato». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto
Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição
de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António
Pereira, 1894.
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