quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Os Meus Amores. Contos e Baladas. Trindade Coelho. «Poucas flôres: uma coisa que todos notavam com estranheza. Mas desde que lhe morrera a mulher mais a filha, o José Cosme deixara-se de as cultivar, e nos canteiros assim devolutos tinha semeado repolhos»

Cortesia de wikipedia e jdact

De acordo com o original

«(…) Meia hora depois regressava, o Sultão pela arreata, o Manoel no meio dos saccos, e adeante do Manoel o bello garrafão, sem pinga... Pelo caminho, a todos o Thomé contava a historia, a rir como um perdido, n’um ah!, ah!, de gargalhadas sonoras, muito intimas. Colheita rica, sim senhores, um colheitão! E parando á porta, ainda a mulher se benzia do alto da escada, mexendo e remexendo o alguidar de barro: Nome do Padre, do Filho, do Espirito Santo. Ao mesmo tempo que o Thomé, abrindo os braços, respondia reclamando as sopas: Amen!

Ultima dadiva
Distante do rio apenas um tiro de bala ficava o horto do José Cosme, bello horto ainda que pequeno, todo mimoso de fructas e hortaliças, fechado entre velhas paredes musgosas, atufadas em silvedo, communicando com a estrada por um pequeno portelo mal seguro. E eis ali quanto ao pobre homem restava dos seus antigos haveres: o horto, a um canto a nora, e perto da nora, sob a umbella tufada e virente da antiga magnolia gigantesca, a misera casinhola de alpendre, apenas com uma porta e duas janellitas lateraes mas toda pittoresca das heras que a revestiam, que lhe pendiam dos beiraes enlaçadas com as trepadeiras. De modo que na primavera, quando as parasitas abriam serenamente os seus melindrosos calices sobre esse fundo de verdura reluzente, e a magnolia toda se toucava de flores fazendo docel á vivenda, aquelle pequeno canto d’horto, com a sua nora e com a sua agua espelhante e limpida, tomava a feição ingenua de uma delicadissima tela de paizagista, aquarela deliciosa, alegre e idyllica, cheia de encantos na poesia rustica da sua simplicidade.
No verão, ás horas de calor, quando o sol caía a pino sobre a larga paizagem adormecida e turva, e as arvores da estrada não davam sombra que aliviasse, aquella tranquillidade com que o José Cosme ressonava sob o alpendre, braços nús e peito nú, o chapeirão de palha grossa resguardando-lhe a cara, fazia inveja aos que por ali passavam, cançados e cheios de poeira, flagellados por aquella estiagem inclemente. Ó tio José!, gritavam-lhe do caminho. Tio José! Ó regalado! Mas os que entendiam de lavoura, proprietarios e maioraes, esses deixavam dormir o José Cosme e ficavam-se a admirar o horto. Ora na verdade!... Bello horto, sim senhores! Por aquellas redondezas não havia outro que se lhe comparasse, tão esmerada era a sua cultura, tão esmerada e tão completa, pois que de mais a mais nem palmo de terra ficara inculto. Nas leiras, dispostas com symetria agradavel, verdejavam cheios de viço, frescos e medrados, legumes de todas as castas, desde a alface muito tenra, de folhas verde-claras, toda acaçapada no chão humido das regas, até ás trepadeiras das vagens que enroscadas ascendiam pela basta rodriga de castanho aparada com todo o esmero, formando massiços de verdura sombria que os casulos esguios dos feijões crivavam de alto a baixo. Arvores, apenas as precisas para aformosearem o horto, sem prejudicarem com a sombra a vegetação franca das hortaliças. Mas todas as que havia eram mimosas de fructas nas estações competentes, cerejas, peras, maçãs, pecegos mesmo.
Poucas flôres: uma coisa que todos notavam com estranheza. Mas desde que lhe morrera a mulher mais a filha, o José Cosme deixara-se de as cultivar, e nos canteiros assim devolutos tinha semeado repolhos, que por signal vinham enfezados. Só teve o cuidado de não deixar morrer os goivos. Uma vez por anno, em fins de Maio, colhia-os todos de uma vez, e ia leval-os em braçado á sepultura rasa das suas defunctas. Exactamente n’essa tarde tinha elle ido ao cemiterio fazer a fúnebre visita. Quando se recolheu era já noite. Mal acabou de cear levantou-se bruscamente da mesa e foi-se para o horto, com uma grande vontade de chorar. Estava nas suas horas tristes, n’essas horas em que as energias todas da sua alma e até as do seu corpo vergavam sob o flagello de uma dôr violenta, exacerbada agora pela saudade dos que lhe tinham morrido... E para maior desgraça fugira-lhe o bem das lagrimas. De modo que sem esse lenitivo, aquellas medonhas tempestades custavam o dobro a supportar. Abstracto, n’uma especie de entorpecimento idiota, percorria sem descanço todas as ruas do horto, cabisbaixo, acabrunhado, autómato». In Trindade Coelho, Os Meus Amores, Contos e Baladas, Projecto Gutenberg, ISSO 88589-1, 2006, produção de Carla Ramos e Ricardo Diogo e edição de Rita Farinha, Os Meus Amores, 2ª edição, Lisboa, Livraria de António Pereira, 1894.

Cortesia de PGutenberg/JDACT