quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A Rosa de Alexandria. Maria L. Meleiro. «… de um lado encontravam-se os servidores, do outro os grandes da corte, que enxameavam à volta do trono num clima de suspeita e de intriga em que todos se vigiavam: os amigos e ministros do rei, os encarregados de negócios, embaixadores…»

Cortesia de wikipedia

«Ninguém me é estranho, se for bom. A natureza é só uma para todos; a diferença está no carácter». In Menandro (342-C.242 a. C)

A morte da águia
«(…) Todas as dinastias conhecem dramas familiares. Tomamo-nos porém de espanto com os Lágidas, capazes de conceber projectos generosos e de patrocinar uma civilização eficaz e refinada, mas que ao mesmo tempo se degladiam em rivalidades sangrentas levadas ao limite do admissível. Passado o período heróico das conquistas dos diádocos descendentes de Alexandre, a sucessão ao trono passou a pertencer ao primogénito. Muitas vezes aconteceu, porém, ser este afastado ou mesmo assassinado, por ter o rei preferido outro filho ou mesmo a descendência de uma outra união, como foi o caso de Ptolomeu Sóter. Ambiciosos e usurpadores estavam assim sempre à espreita, criando facções rivais que se combatiam entre si, com isto enfraquecendo o poder real. A ocupação da terra egípcia pelos herdeiros de Alexandre ocorrera, porém, sob bons auspícios. Ptolomeu Sóter, um modelo de soberano, morrera no seu leito, contando a já avançada idade de oitenta e quatro anos. Depois, o bastardo legitimado Filadelfo, que o Sóter associara ao poder desde há algum tempo em detrimento do primogénito Ptolomeu Ceraunos, ocupara praticamente sem problemas de maior o trono do Egipto após a morte do pai. A sábia medida do Sóter tivera o mérito de colocar os ambiciosos perante um facto consumado.
Além da família, Arsínoe Filadelfa não tinha junto dela seu igual. Todavia, o poder ambicionado, sempre tão perto, constantemente lhe passara ao lado. Ela, porém, soubera conquistá-lo. Traçara a sua rota ela mesma. Teve de fazer concessões, pactuar. Era uma questão de condição. Nunca o pai pensou nela, sequer por um instante, para lhe suceder. Nem o próprio Alexandre delegara em Olímpia, sua mãe, a regência do trono da Macedónia, estando ele em campanha na Ásia. Chamara Antípatros, um dos seus mais conceituados generais, que já servira seu pai. Era a lei. Muitos se agitavam na escala social: de um lado encontravam-se os servidores, do outro os grandes da corte, que enxameavam à volta do trono num clima de suspeita e de intriga em que todos se vigiavam: os amigos e ministros do rei, os encarregados de negócios, embaixadores, o grão-chanceler, o arquidicasta, o epiestratego, o dioceta bem como uma multidão imensa de nomarcas, estrategos e secretários reais, artistas, músicos e concubinas. Cada palavra era ouvida, pesada, difundida, e era preciso exercer vigilância sobre si próprio para não cometer erros fatais. O total isolamento na corte não era possível; apenas o tipo de isolamento que se tem no meio de uma multidão.
Satyros fora um esporádico aliado de Arsínoe, um estratego militar que lhe era dedicado para além dos limites do que seria admissível... mas a insegurança de Filadelfo, cioso das atenções da irmã porque na verdade pressentia, com ou sem fundamento, conspirações em toda a parte, condenara-o ao exílio forçado em Coptos, onde acabaria por morrer de forma suspeita. Era um facto que os antepassados de Alexandre deviam o seu poder à lei do mais forte. As cenas de embriaguez, a reputação de alcoolismo de seu pai, Filipe da Macedónia, eram sobejamente conhecidas. Havia taras na família, males incuráveis, que os excessos do monarca, o atraso mental de seu filho Filipe Arrideu, e os métodos sanguinários usados pelo soberano para suplantar os seus rivais no acesso ao trono comprovavam. Sendo regente por morte do irmão Perdiccas, em combate, Filipe rapidamente se desembaraçara do sobrinho herdeiro do trono. Depois, tivera nada menos do que sete esposas! As desordens na casa de Filipe, os seus casamentos e amores, levantavam problemas que por contágio se estendiam do gineceu ao reino, originando violentas querelas sobretudo com Olímpia, sua terceira esposa e mãe de Alexandre, uma fogosa princesa do selvático Epiro, que incitava o filho contra o pai.
O intemperante monarca, amante de mulheres e de vinho, resoluto e liberto de escrúpulos, era, não obstante, dotado de notável talento político, militar e diplomático. Tornou-se, no bom e no mau sentido, modelo de muitos monarcas. Conhecia a fraqueza e a venalidade dos homens e clamava sem pejo que conquistaria qualquer cidade onde pudesse fazer chegar um carregamento de ouro. E não tinha Harpalo, o infiel tesoureiro de Alexandre, deixado bem à vista de todos que assim era? Não foram muitos políticos atenienses, e oradores probos acima de qualquer suspeita, acusados de se terem comprometido com o ouro oferecido por Harpalo? Não recebera também o impoluto Demóstenes, ele próprio, vinte talentos para acalmar os seus credores mais importunos? As minas de ouro da Trácia e da Macedónia rendiam a Filipe nada menos que dez mil talentos por ano. O monarca macedónio podia bem corromper e seduzir os helenos. Se a estirpe macedónia demonstrara por vezes brutalidade, o faraó, bem o sabiam os egípcios, nem sempre era suave. Em resposta à pergunta de Alexandre sobre o segredo da sua origem divina, os sacerdotes de Amon tinham apontado nele um faraó divino, sagrando-o como tal no templo de Ptah.
Por conseguinte, os seus descendentes ocupariam o trono das Duas Terras, do Alto e do Baixo Egipto, ainda que Ptolomeu Sóter clamasse que o Egipto lhe pertencia, pois conquistara-o pela espada... As honras fúnebres a prestar à defunta rainha Arsínoe incluiriam um sumptuoso cortejo, tão ao gosto alexandrino. Os sacerdotes de Anúbis figurariam à frente, desfilando entre a multidão que se aglomerava nas partes laterais da avenida, o passo lento, devido ao peso das máscaras, insistentemente marcado pela cadência dos tambores. A rematar haveria um coro de carpideiras entoando um estranho canto do outro mundo, feito de murmúrios em escala ascendente e descendente, sem palavras, reproduzindo o som de certas vogais. As mãos das dançarinas, ondulando em uníssono com o som produzido, reflectindo luz e sombra, criariam uma atmosfera hipnótica reforçada pelo som dos sistros das sacerdotisas de Isis, agitados por estas a intervalos regulares». In Maria Lucília Meleiro, A Rosa de Alexandria, tradução de João Lourenço, Grandes Narrativas nº 192, Editorial Presença, Lisboa, 2002, ISBN 972-232-961-8.

Cortesia de EPresença/JDACT