quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Os Sensos Incomuns. Maria Isabel Barreno. «Pestanejante falou todo o tempo, Autofágica roeu as unhas e Biface ficou sabendo quem gostava de conversar com ninguém. Ela precisa muito de atenção…»


Cortesia wikipedia e jdact

As amigas
«(…) Dessa nascente dialéctica do riso adveio a corruptela popular muito riso, pouco siso. Entre Pestanejante, delirantemente disposta a carregar a responsabilidade de entender e ordenar o mundo, e Autofágica, sempre receosa, ou ávida, de qualquer perigo iminente no horizonte e pronta a devorar-se, esta terceira mulher, a que poderíamos chamar Biface, encontrava algum repouso para as suas próprias contradições. Encontravam-se as três com alguma frequência. Trabalhavam perto umas das, Autofágica e Biface na mesma empresa, em andares diferentes, Pestanejante num serviço estatal que ficava no quarteirão logo a seguir. Almoçavam juntas ou, juntas também, não almoçavam e passeavam a pé vendo montras, ou iam ao cabeleireiro. Por vezes, também se encontravam à tarde, quando saíam do emprego: mas eram encontros breves e raros, que apenas praticavam pelo seu sabor picante a transgressão, pois que todas se sentiam no dever de recolher rapidamente a suas casas, para cuidar de jantares, maridos e filhos.
Pestanejante tinha, como já poderá ter sido deduzido, uma atitude protectora, paternalista, em relação às outras duas. Considerava-as um pouco tontas, desprevenidas, especialmente Biface, por causa da sua origem social que a levava a frequentes deslizes de má dicção, de mau gosto, e por causa daquela dicotomia facial que Pestanejante interpretava como imaturidade, talvez já perenemente instalada em ambivalência irresolúvel. Tu não sabes o que queres da vida, dizia Pestanejante a Biface. E também a Autofágica. Inundava-as não só de opiniões, o que fazia com toda a gente, mas também de conselhos. Ela sentia-se particularmente apta a dar conselhos e de boa vontade os distribuía a todos à sua volta, mas aprendera, com dificuldade, que muita gente não só não agradecia conselhos como até os rejeitava ou se ofendia com eles. Este era um dos agravos que ela tinha para com o mundo, para com os outros. Escutada só pelos mais cordatos, pelos mais delicados, não entendia a parcimónia com que o mundo lhe concedia tão escassa assembleia disposta a escutá-la, e viera a confundir esta característica de cordura auditiva com amizade. Primeiro como exigência inconsciente, só quem me escuta meu amigo é, depois, por um processo normal de projecção das necessidades próprias nos outros, achando que as pessoas de boa qualidade humana, as interessantes, eram aquelas que a escutavam com atenção.
Conhecera Autofágica que a escutara, olhando-a fixamente, como fazia com todo o objecto de atenção surgido no horizonte, e roendo as unhas. Achara-a interessantíssima, intensa, nervosa, sem dúvida, e o nervosismo fora um esplêndido motivo para fornecer conselhos. Dizia-lhe: …não podes viver nessa tensão permanente, tens muita paixão, muita energia, mas tens de saber usá-la. Deves procurar em ti o que te angustia e abrir-te ao mundo, procurar a harmonia com o Universo, e sentia-se profunda e sábia. Autofágica escutava, roendo as unhas, e um dia respondeu: …acho que tens razão, a minha mãe diz-me o mesmo, todos me dizem o mesmo. Quase se zangaram. Pestanejante ofendeu-se imenso: ela não dizia o mesmo que a mãe de Autofágica, o mesmo que todos; ela dispensava aos outros pedaços duma sabedoria profunda, verdadeira, e arduamente conquistada. Tu não entendes o que eu digo. Imagina, achares que eu digo o mesmo que a tua mãe! Autofágica, que não tinha qualquer ideia do orgulho e da capacidade de ofensa de Pestanejante, respondeu com displicência: …claro, não dizes exactamente o mesmo, mas, no fundo, a essência é a mesma. Pestanejante tinha-se na conta de generosa, por isso converteu rapidamente o seu sentimento de ofensa na certeza de que Autofágica era estúpida, e não só lhe perdoou a estupidez como se convenceu de que ela precisava urgentemente da sua ajuda. Foi assim que passaram a encontrar-se com frequência.
Depois, Autofágica apareceu acompanhada de Biface. Acho que vais gostar de conversar com ela, disse, olhando o horizonte. Pestanejante julgou que ela se dirigia a Biface, sentiu-se lisonjeada e achou que Autofágica fazia progressos. Biface, que sempre oscilava nos seus juízos, aguardou o desenrolar dos acontecimentos para saber quem iria conversar com quem, e quem iria gostar de quê. Pestanejante falou todo o tempo, Autofágica roeu as unhas e Biface ficou sabendo quem gostava de conversar com ninguém. Ela precisa muito de atenção, comentou depois, com Autofágica, referindo-se a Pestanejante. Fala muito, mas é boa pessoa, concluiu Autofágica. Além disso, acho engraçado ouvir as pessoas: dizem todas as mesmas coisas, e cada uma está superconvencida que diz coisas únicas e muito originais. É raro ouvir-se alguma coisa de novo neste mundo. Biface riu-se. E assim conviviam as três, com muitos enganos. Cada uma se julgando superior, mais bem apetrechada ou menos desvalida do que as outras no quotidiano diálogo com o mundo, Pestanejante pronta ao bom conselho, Autofágica na sua ávida busca por alguma coisa que a amedrontasse e surpreendesse, Biface gargalhando, incapaz de sustentar suas tensões tão extremamente opostas». In Maria Isabel Barreno, Os Sensos Incomuns, 1993, colecção Campo da Palavra, Grande Prémio do Conto, Editorial Caminho, 2008, ISBN 978-972-210-886-7.

Cortesia ECaminho/JDACT