«Vivi em ti durante todo este tempo, agora, que eu parto, com
quem te pareces tu, verdadeiramente? Será que existes, ou inventei-te dos pés à
cabeça?» In Virginia Woolf
«(…)
Este é o ritmo
de si própria que ela inventa: um poema. Depois outro poema. De novo um poema,
iludindo a paixão. Viagens de poeira e secura à beira das estradas quase sempre
desertas, em incontáveis dias e meses de lentidões absurdas. Mas é o trilho do
sonho que a impele, a ânsia do conhecimento que a invade, e portanto ela parte,
vai e torna sempre; avesso e regresso na urgência do saber. Por isso de novo
sai, se distancia, regressa e fica, por vezes sonsa outras vezes áspera, outras
ainda esquiva, juntando o temor à coragem, a modernidade ao clássico, a ousadia
simulando o antigo. Misturando os papéis: aqueles que recusa e os que, mesmo a
contragosto, aceita. Parto depois de cada parto. E de poema. E de poema. O
delírio é uma arte que cultiva à pena, na invenção da alma e da natureza. Mas
não será o corpo o melhor de si, o que nela sustenta a tanta luz e avoluma a
tanta rebeldia? Ou o poema? O excesso como arma ou como pena, na verbena das
tardes, quando nela tudo volteia, se incendeia e arde.
Junto às margens de um rio
«Junto às margens de um rio docemente
com meus suspiros altercando,
a viva apreensão ia pintando
passadas glórias no cristal luzente.
Mas quando nesta ideia mais contente
o coração se estava recreando,
despenhou-se do peito o gosto brando,
envolto com a rápida corrente.
Lá vão parar meus gostos no oceano,
ficando inanimado o peito frio,
que o recreio buscou só por seu dano.
Acabou-se o contente desvario,
e meus olhos saudosos do engano
quase querem formar um novo rio».
Raízes
Quando a armada da Índia entra na barra,
Leonor Távora, sufocando no seu camarote, sobe até ao convés, a sentir a forte aragem
a salgar-lhe os lábios ressequidos por onde passa a ponta da língua, coração de
novo apertado na fundura do peito. Febril, há já alguns dias que dorme mal, às
voltas na cama balouçante, tentando em vão contrariar uma sensação ruim de mau
presságio que de madrugada a toma e no seu peito crava a ponta afiada e nua de
lâmina de faca. Angustiada, guardou para si aquele amontoar de nuvens negras,
que dia após dia mais lhe toldam a alma e o coração apressado. Medo
incongruente para o qual não consegue encontrar outra explicação senão os
nervos irritados e o cansaço provocados pela longa viagem. Desconcerto que nela
se vai tornando maior à medida que se aproximam da capital do reino. Desatenta,
desliza os dedos nus e magros ao longo da amurada, enquanto caminha a olhar a
imensidão da água, de um verde cintilante de esmeralda. Em passo lento e
cauteloso dirige-se devagar para a proa, onde o vento é bem mais forte e lhe
solta dos ganchos de ouro e dos pregos de diamantes e rubis algumas madeixas
dos ondeados cabelos louros que logo esvoaçam.
Olhos semicerrados de
um denso azul-violeta, toldados pelas pestanas, que pouco coam a intensa luz
daquele dia de sol, enquanto escuta os passos corridos e descalços na lida dos
que conduzem o barco em direcção ao porto de Lisboa, ela perde-se nos pensamentos
e nas dúvidas, recordando o muito de si deixado para trás. Admira-se de como as
saudades dos seus, que tantas foram durante os anos na Índia, de um momento
para o outro se esfumaram; imaginando perigos onde deveria estar a segurança,
adivinhando ameaças onde era crível encontrar-se a bonança. Leonor Távora
confunde as lágrimas com a ligeira névoa que começou a levantar-se do Tejo,
arrastando consigo um cheiro acre e macerado a fundo lodoso de rio, misturado
com o sal do mar a ficar para trás, e quando sente em torno dos ombros o braço
forte de Francisco Assis que a abraça
em silêncio, encosta-se ao seu peito quente, acolhedor, a enroscar-se naquele
seu odor de homem de que tanto gosta». In
Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio
D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.
Cortesia
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