domingo, 25 de outubro de 2015

Ambas as Mãos sobre o Corpo. Maria Teresa Horta. «Tão à vontade ali, que se pode perguntar se não estivera lá sempre: nua e distendida a observar um pássaro ou concentrando-se apenas para desviar a sede de si própria ou a memória daquela campainha»

jdact

O Ócio
«(…) Os olhos desviaram-se das vidraças rutilantes para se aquietarem na parede defronte a retardar a sede, toda ela a mulher ociosa que se prende na fuga. E as pessoas que a espreitam através dos cortinados corridos, que aguardam ansiosas aquele seu gesto, aquela sua sede e lhe fixam as mãos trémulas, como ela fixa o pássaro, aguardam silenciosas o toque vibrante da campainha até ali sempre inútil; e quase desistem ao verem-na imersa, envolta em toda essa imobilidade pastosa, como que fictícia..., apenas uma ligeira tremura nas mãos agarradas aos lados da cadeira de repouso dá sensação de vida. A varanda. Tão à vontade ali, que se pode perguntar se não estivera lá sempre: nua e distendida a observar um pássaro ou concentrando-se apenas para desviar a sede de si própria ou a memória daquela campainha.

A Tarde
Só muito vagamente os ouvia e ficava ausente, os olhos fixos no livro aberto ou quantas vezes fechado: então sem dúvida os olhos fixos na capa: nos dedos brancos; os próprios dedos, se tocavam os joelhos ao de leve ou quando o anel que colocara de manhã no segundo dedo da mão direita se ingurgitava de luz, luz gordurosa de crepúsculo quente, abafado, onde eles, estendidos ou inclinados nas cadeiras perto da piscina, dormitavam, olhando-a todavia de vez em quando disfarçadamente para em seguida trocarem olhares cúmplices onde o sorriso se insinuava vago: e ela sabia-o, sem todavia desviar a atenção do livro, dos joelhos, ainda quentes de sol, do anel; o anel repleto de luz, como que a recolher toda a claridade do início da noite para a qual se teria de arranjar. Respondia de maneira vaga e a custo às perguntas, principalmente se ele a fixava, lhe fixava o corpo, os cabelos que iria escovar vezes sem fim tentando demorar o que sabia inevitável sem força para recusar, para fugir, para contornar as estátuas, abrir o portão lá ao fundo, invisível agora dali, muito mais distante do que aquela figura de mármore inclinada da qual os olhos não abrangem o sorriso tal a distância a que se encontra ela finalmente cara erguida do livro que não lê ou que se lê esquece, pois todos os dias se curva sobre a mesma página, as pálpebras semicerradas por causa da claridade intensa; ou será apenas um hábito? O hábito a que se doma naquela revolta sem sentido. Nula. Roda o anel: a pedra enorme, facetada, sem cor definida; roda-o no dedo magro, enquanto os outros falam baixo, somente num sussurro. E a pele arrepia-se-lhe à pressão acariciadora que lhe magoa o corpo. Torna a abrir o livro sem todavia tornar a inclinar a cabeça, a nuca assente na parte superior da cadeira de repouso, os dedos crispados nas páginas crestadas do livro, os olhos ausentes, baços, inertes, os braços inertes sob as mãos dele. E o anel: pesado, sempre mais pesado, o anel que ele lhe dera, enorme, brilhante, quadrado, onde a luz se concentra toda, todo calor; e os braços tremem-lhe imperceptivelmente: o sorriso deles pesa-lhe tal como o anel lhe pesa demasiado: enorme, de uma beleza extrema, obcecante. O livro cai, escorrega, ou terá sido ela que o atirou, que o arremessou? Que se arrancou, ela, às suas mãos, ou ele que a teria largado de súbito? Levantar-se-á ou continuará sentada enquanto a fitam, graves, suspensos, carinhosos até, solícitos? Só muito vagamente os ouve. À beira da piscina é como se sentisse já no corpo a frescura brusca da água, o recolher sempre imprevisto do calor para dentro de si.

O Crepúsculo
A escova descia devagar, faiscando. Firme segura: 8, 9..., a luz ácida caindo do tecto emprestava à mão um tom amarelado de cera; porém quando já perto dos ombros mergulhava na sombra, era antes de um tom desmaiado, muito pálida comprida, fechada sobre o cabo estreito, conduzindo a escova mecanicamente: 10, 11..., a escova de um azul metálico brilhando sob a luz ácida da casa de banho, a mão roçando até aos ombros os cabelos sombrios; o espelho quadrado reflectindo toda a luz, toda a intensidade da luz, qualquer brilho, qualquer mancha: a cara inexpressiva concentrada nos gestos, os ombros cortados pelas alças estreitas da camisa de noite branca, o braço nu flectido, a escova de um azul quase metálico e os cabelos lisos: uma mancha espessa, escura: 12, 13..., o movimento do braço é agora mais lento; da raiz dos cabelos até aos ombros, a mão mergulhada na sombra, logo cor de cera sob a luz ácida reflectida pelos azulejos brancos, logo de novo na sombra, porém cada vez mais devagar, deixando cair a escova pelos cabelos num ruído macio, quente: 14, 15..., da raiz até aos ombros. E o recorte do rosto no vazio do espelho, o recorte macio dos ombros, do gesto mecânico cada vez mais lento, lento até parar no final dos cabelos». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, 1970, Publicações Europa América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.

Cortesia PEAmérica/JDACT