O
Ócio
«(…) Os olhos
desviaram-se das vidraças rutilantes para se aquietarem na parede defronte a
retardar a sede, toda ela a mulher ociosa que se prende na fuga. E as pessoas
que a espreitam através dos cortinados corridos, que aguardam ansiosas aquele
seu gesto, aquela sua sede e lhe fixam as mãos trémulas, como ela fixa o
pássaro, aguardam silenciosas o toque vibrante da campainha até ali sempre
inútil; e quase desistem ao verem-na imersa, envolta em toda essa imobilidade
pastosa, como que fictícia..., apenas uma ligeira tremura nas mãos agarradas
aos lados da cadeira de repouso dá sensação de vida. A varanda. Tão à vontade
ali, que se pode perguntar se não estivera lá sempre: nua e distendida a
observar um pássaro ou concentrando-se apenas para desviar a sede de si própria
ou a memória daquela campainha.
A
Tarde
Só muito
vagamente os ouvia e ficava ausente, os olhos fixos no livro aberto ou quantas
vezes fechado: então sem dúvida os olhos fixos na capa: nos dedos brancos; os
próprios dedos, se tocavam os joelhos ao de leve ou quando o anel que colocara
de manhã no segundo dedo da mão direita se ingurgitava de luz, luz gordurosa de
crepúsculo quente, abafado, onde eles, estendidos ou inclinados nas cadeiras
perto da piscina, dormitavam, olhando-a todavia de vez em quando
disfarçadamente para em seguida trocarem olhares cúmplices onde o sorriso se
insinuava vago: e ela sabia-o, sem todavia desviar a atenção do livro, dos joelhos,
ainda quentes de sol, do anel; o anel repleto de luz, como que a recolher toda
a claridade do início da noite para a qual se teria de arranjar. Respondia de
maneira vaga e a custo às perguntas, principalmente se ele a fixava, lhe fixava
o corpo, os cabelos que iria escovar vezes sem fim tentando demorar o que sabia
inevitável sem força para recusar, para fugir, para contornar as estátuas,
abrir o portão lá ao fundo, invisível agora dali, muito mais distante do que
aquela figura de mármore inclinada da qual os olhos não abrangem o sorriso tal
a distância a que se encontra ela finalmente cara erguida do livro que não lê
ou que se lê esquece, pois todos os dias se curva sobre a mesma página, as
pálpebras semicerradas por causa da claridade intensa; ou será apenas um
hábito? O hábito a que se doma naquela revolta sem sentido. Nula.
Roda o anel: a pedra enorme, facetada, sem cor definida; roda-o no dedo magro,
enquanto os outros falam baixo, somente num sussurro. E a pele arrepia-se-lhe à
pressão acariciadora que lhe magoa o corpo. Torna a abrir o livro sem todavia
tornar a inclinar a cabeça, a nuca assente na parte superior da cadeira de
repouso, os dedos crispados nas páginas crestadas do livro, os olhos ausentes,
baços, inertes, os braços inertes sob as mãos dele. E o anel: pesado, sempre
mais pesado, o anel que ele lhe dera, enorme, brilhante, quadrado, onde a luz
se concentra toda, todo calor; e os braços tremem-lhe imperceptivelmente: o
sorriso deles pesa-lhe tal como o anel lhe pesa demasiado: enorme, de uma beleza
extrema, obcecante. O livro cai, escorrega, ou terá sido ela que o atirou, que
o arremessou? Que se arrancou, ela, às suas mãos, ou ele que a teria largado de
súbito? Levantar-se-á ou continuará sentada enquanto a fitam, graves,
suspensos, carinhosos até, solícitos? Só muito vagamente os ouve. À beira da
piscina é como se sentisse já no corpo a frescura brusca da água, o recolher
sempre imprevisto do calor para dentro de si.
O Crepúsculo
A
escova descia devagar, faiscando. Firme segura: 8, 9..., a luz ácida caindo do
tecto emprestava à mão um tom amarelado de cera; porém quando já perto dos
ombros mergulhava na sombra, era antes de um tom desmaiado, muito pálida
comprida, fechada sobre o cabo estreito, conduzindo a escova mecanicamente: 10,
11..., a escova de um azul metálico brilhando sob a luz ácida da casa de banho,
a mão roçando até aos ombros os cabelos sombrios; o espelho quadrado reflectindo
toda a luz, toda a intensidade da luz, qualquer brilho, qualquer mancha: a cara
inexpressiva concentrada nos gestos, os ombros cortados pelas alças estreitas da
camisa de noite branca, o braço nu flectido, a escova de um azul quase metálico
e os cabelos lisos: uma mancha espessa, escura: 12, 13..., o movimento do braço
é agora mais lento; da raiz dos cabelos até aos ombros, a mão mergulhada na
sombra, logo cor de cera sob a luz ácida reflectida pelos azulejos brancos, logo
de novo na sombra, porém cada vez mais devagar, deixando cair a escova pelos
cabelos num ruído macio, quente: 14, 15..., da raiz até aos ombros. E o recorte
do rosto no vazio do espelho, o recorte macio dos ombros, do gesto mecânico
cada vez mais lento, lento até parar no final dos cabelos». In
Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, 1970, Publicações Europa
América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.
Cortesia
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