segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Esboço para um possível Ensaio sobre Fiama Hasse Pais Brandão. Márcio L. Dantas. «… embora não sendo uma poesia de cunho confessional, não deixa de transparecer através de alguns sinais as marcas de um espírito atento à vida e sua dinâmica»

Cortesia de wikipedia

«Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar». In Roland Barthes

«A poeta portuguesa Fiama Hasse Pais Brandão (1938-2007), uma das mais importantes vozes literárias surgidas a partir da década de 60 na literatura lusófona, tornou-se, com o tempo, referência e lugar de passagem obrigatório não somente para os críticos, mas também servindo de parâmetro para outros que lidam com a arte de escrever. Para o crítico americano Harold Bloom, seria uma poeta forte. A obra poética da escritora pode ser distinguida em duas fases, conformadoras de dois registos, ou seja, duas poéticas bastante distintas, organizadas aqui em dois grandes arranjos, o que não podemos deixar de reconhecer como bastante incompletos, visto terem partido de uma simplificação meramente didáctica, pois sabemos muito bem que os seus livros não detém a noção codificada de dicção, na medida em que cada livro se apresenta com um ethos específico. Ora, foi justo o facto de não haver preocupação com um âmbito que a definisse como poeta, que se fizesse reconhecer de imediato um texto como pertencente à sua assinatura, quer dizer, refractou a ideia sedimentada de que o poeta detém uma dicção que o faz diferente dos demais pares. Portanto, eis aqui o que inicialmente nos despertou a simpatia, para, em seguida, adentrarmos de maneira mais sistemática numa investigação com mais rigor e calcado em bases teóricas e metodológicas. Vejamos como tomamos a liberdade de organizar: A primeira fase, tendo como ponto de partida a publicação de Morfismos (1961), caracteriza-se pela busca de um poema com depuramento formal e rigor com relação à necessidade de colocar a palavra em evidência, muita vez até isolada, sem os conectivos requeridos pela pontuação gramatical, o que gera uma densidade e uma tensão semânticas que, por vezes, beira a metáforas e imagens surrealistas, dado o grau de arbitrariedade e ausência de motivação lógica entre os elementos postos para a aproximação com o objectivo de articular a imagem, quase sempre de natureza crítica ou metalinguística. Há um deliberado controle das emoções, buscando uma escritura impessoal, sem marcas autobiográficas. Assim, encontramo-nos diante de uma poesia com pouca transitividade, espécie de criptografia linguística no qual o signo poético não se deixa decodificar numa primeira investida. Eis que temos os livros, para retermos três exemplos, Matéria (1960-1965), O nome lírico (1967), Era (1974).
Depois, há uma segunda fase que, a bem da verdade, já se encontrava implícita em poemas completos ou em laivos nos versos de factura mais directiva, sem retorcimento sintático ou fragmentação, distanciando-se de um discurso ostensivamente criptográfico, observado em inúmeros poemas da primeira fase. Constatamos aqui uma poesia extremamente simples e transitiva, plena de marcas de oralidade, com metáforas claras e dotada de uma argúcia pouco comum, estruturadas num registo que beira a prosa. Os livros que melhor sintetizam tudo o que acima discorremos são Área Branca (1978), Epístolas e memorandos (1996), Cenas vivas (2000), As fábulas (2002). São arranjos de poemas nos quais a poeta por meio de artifícios vários, mormente os advindos de um discurso mais prosaico, almeja uma simplicidade expressiva, escorreita e elegante, refractando o muito do que podemos chamar de experimentalismos presentes nos seus primeiros livros, no qual havia deliberadamente uma preocupação com a forma do poema, com a estrutura, com a disposição das palavras, conseguida esta através de uma série de elipses, fracturas e fragmentações, estrofação livre, manifestando-se sobretudo por imprimir no poema não a tradicional organização sintáctica com os seus implícitos e marcas lógicas, mas numa atitude explícita de subverter as regras da gramática normativa. Há uma outra coisa muito curiosa nessa fase, embora não sendo uma poesia de cunho confessional, não deixa de transparecer através de alguns sinais as marcas de um espírito atento à vida e sua dinâmica. Eis, então, olhos perscrutando o derredor, com seus objectos estáticos ou com a dinamicidade que a tudo preside, lenta ou ligeira.
Em síntese, como não poderia deixar de ser, o olhar da poeta inscreve-se como espécie de lápis que imprime no papel em branco o âmbito, o contorno, as fronteiras, conformando os objectos em a sua singularidade, em sua individualidade, apresentando-o, encenando-o. Para quê? Para que uma singularidade, um evento que sucede em determinado espaço ou tempo tenha um carácter mais universal, falo no sentido de que ocorrem estruturas antropológicas que são inerentes ao humano, partilhados desde sempre por todas as culturas; o poeta, como sendo o que desce a níveis mais profundos da psicologia humana, faz emergir por meio de imagens, elementos constituintes do Imaginário; no caso aqui tratado, a poeta procede de modo a equacionar e problematizar fenómenos e objectos que a circundam, numa atitude filosófica, detendo-se com mais atenção, e muita propriedade, sobre questões ontológicos e estéticos. Por derradeiro, gostaríamos de enfatizar a bela simbiose entre mímeses e episteme, organizada numa poesia de feitio simples, conseguida por uma rara intuição do sensível. Acontece que mesmo tendo efectivado uma separação metodológica em duas fases distintas, longe esquecermos que em toda e qualquer obra poética é possível detectar uma série de constantes psicológicas manifestada por meio de símbolos que se destacam como os mais expressivos e reveladores, aparecendo sob diversas ópticas, mesclando-se com outros pares de mesmo valor de sentido e eficácia no imaginário e nas representações sociais, formando enxames ou constelações de imagens, que se entrelaçam muitas vezes de maneira notável, comprovando a homogeneidade das imagens coalhadas na obra de determinado poeta». In Márcio Lima Dantas, Esboço para um possível Ensaio sobre Fiama Hasse Pais Brandão, Departamento de Letras da UFRN, Tópicos de Literatura Portuguesa II, Wikipédia, Poesia 61.

Cortesia de DLdaUFRN/JDACT