segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Ao Fim da Memória (1906-1939). Fernanda de Castro. «Por uma grande escada de pedra chegávamos aos aposentos da tia Emiliana, Que se compunham de sala, quarto de dormir e quarto de vestir e lavagens. O quarto de dormir tinha uma janela que dava para o Tejo»

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«(…) Também me lembro da casa da minha bisavó, em Cacilhas, isto é, lembro-me duma casa onde havia sempre muita gente, onde não me obrigavam a beber café com leite, onde ninguém me ralhava nem me punha de castigo- O resto, os pormenores, o tempo se encarregou de mo revelar, à medida que íamos crescendo, os meus irmãos e eu. Era uma casa pombalina, cor-de-rosa. Nem pequena nem enorme, tinha janelas de sacada com grades pintadas de verde e muitos vasos de sardinheiras nas varandas. A casa de jantar e a sala, ambas muito grandes, tinham pinturas a fresco nas paredes, cenas de caça na primeira, anjinhos, instrumentos musicais e grinaldas de flores na segunda. Os quartos, excepto o da minha bisavó e o da tia Emiliana, eram alcovas com portas de vidrinhos que davam para a sala e para a casa de jantar. O sótão, enorme, tinha um delicioso cheiro a pó e a bafio. Por uma grande escada de pedra chegávamos aos aposentos da tia Emiliana, Que se compunham de sala, quarto de dormir e quarto de vestir e lavagens. O quarto de dormir tinha uma janela que dava para o Tejo, podendo ver, quando estava deitada, o vaivém das fragatas no rio.
No pátio lajeado da cozinha havia outra escada de pedra, toda enredada numa trepadeira que dava umas flores esverdeadas chamadas martírios. A quinta que me parecia muito grande era na realidade pequena e bastante mal tratada por falta de água e por já não haver, nessa altura, hortelão nem jardineiro. Ainda assim tinha algumas árvores de fruto, pereiras e macieiras, alguns pés de uva moscatel, uma enorme amoreira e duas figueiras que davam uns figos pequenos mas muito doces. E havia ainda o mirante, a praia da Margueira e o poço onde, dizia a cozinheira Guilhermina, viviam lagartos e lacraus. A tarde cai lentamente, o Sol começa a diluir-se no horizonte, a Ria é agora um espelho que recolhe os últimos lumes do poente, um espelho que umas vezes parece azul, outras vezes cinzento, outras de prata velha. Estou a ver a água parada, a olhar aquelas aves brancas duma brancura de cisne, que se perfilam no horizonte a tentar surpreender a ondulação dos peixes. Estou aqui na ilha de Faro, à beira da Ria, mas que fio de Ariana me levou para bem longe, para a casa da minha infância? A doçura da tarde? O voo das gaivotas? Os reflexos dos últimos raios de sol na água imóvel? De repente compreendi: não era o lento subir da maré que eu captava, nem o sussurro da água na areia, mas o longínquo marulhar do Tejo na pequena praia da Margueira.
Os dias aqui decorrem serenos, mas cheios de acontecientos importantes. Esta manhã reparei que algumas figueiras tinham pequenos tufos de folhas tenras nas extremidades dos braços descarnados, e tanto bastou para que deixasse de acreditar nas penas eternas. Deus é infinitamente misericordioso, e Judas arrependeu-se: Não há árvores malditas. Esta noite o mar rompeu os diques, desconjuntou os barcos, derrubou as barracas dos pescadores e arremessou à praia uma pequena Cyprea do Mediterrâneo, ainda viva, e uma gaivota do Atlântico já morta. O fragor do mar parece o rugido dum leão que fosse capaz de rugir a noite inteira. Não sei se é um bem, se um mal esta corrida para o espaço, mas não posso esquecer os olhos angustiados daquela criança que me perguntou ao ver no Cinema um foguetão apontado para o céu: vão matar os anjos? Sim, confesso: estou de mau humor por causa da Lua. A Lua sempre foi dos Poetas, não esse miserável planeta que os sábios inventaram, mas a Lua que eu amo, ninhada de luar, algo de branco puro, inacessível, algo para cantar quando o silêncio, a noite, a solidão são lágrimas de sangue que o Poeta se recusa a chorar». In Fernanda de Castro, Ao Fim da Memória (1906-1939), Editorial Verbo, Lisboa, 1988, Depósito legal nº 21636.

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