sexta-feira, 9 de outubro de 2015

As Esquinas do Tempo. Rosa Lobato Faria. «Não é a Margarida, é a minha bisavó, que por sinal também se chamava Margarida. Uma parecença incrível, não achas? Impressionante…»

Cortesia de wikipedia

«(…) Continua indisponível, disse Pedro. Não insistas. Ela foi dar um passeio e não tem rede. A Margarida diz que tu às vezes és um chato, e eu estou a ver que ela tem razão. Se eu ao menos soubesse em que hotel ela está. Mas não diz nada. Vou a Vila Real ou Bragança, ou Braga, sei lá, fazer uma palestra. Quando voltar telefono. Mas nem volta, nem telefona. Já é meio-dia, vou ligar à Matilde. Não faças isso, vais alarmar a senhora sem necessidade. Tens razão. É melhor aparecer à hora do almoço. És mesmo um chato, Pedro! Não sou eu que sou chato. És tu que não percebes nada de amor. Tens um casamento estável, tranquilo, uns filhos óptimos, para ti o amor é um dado adquirido. Mas de um modo geral há um que ama e outro que se deixa amar. Não é isso que dizem? Mariana, sabe alguma coisa da sua irmã?
Eu não, mãe. Não faço ideia. Acho que foi para o Norte. Vila Real, ou lá o que é. Ah, pois, é isso. Matilde estava a par das escapadelas da filha e tinha resolvido achar tudo natural. Preferia que ela tivesse dado um telefonema, como às vezes fazia, para dizer estou bem, mas talvez estivesse tão bem que nem lhe ocorresse telefonar. Antes assim. Desde que tivesse saúde. Quando Pedro chegou, mostrou-se tão tranquila que o contagiou com essa calma que muitas vezes a caracterizava. Senta-te, Pedro. Vou buscar um aperitivo. Mas Pedro não conseguia sentar-se. Andou às voltas na saleta de Matilde e reparou, na camilha do canto, numa fotografia que nunca tinha visto: Margarida vestida de dama antiga, segurando nas mãos um colar de pérolas. E quando Matilde voltou, que linda que está a Margarida nesta fotografia, vestida de dama antiga. Ela que odeia o Carnaval... Não é a Margarida, é a minha bisavó, que por sinal também se chamava Margarida. Uma parecença incrível, não achas? Impressionante. Pedro sentiu-se um pouco tonto. Sentou-se com a fotografia na mão e pareceu-lhe que aquela outra Margarida troçava da sua preocupação e do seu amor.

Margarida, no desespero de não ter um duche que lhe fornecesse água para o banho ou electricidade onde pudesse ligar um secador, lá ficou pronta, lavada a prestações, penteada pela Lucinda, vestida de menina rica do princípio do século vinte. Em compensação, o pequeno-almoço requintado tinha feito as delícias de uma viajante esfomeada. Um século mais tarde não teria comido melhor. A Lucinda levou a bandeja e recomendou-lhe que não se demorasse. Não tinha alternativa: era preciso descer. A escadaria, cheia de quadros, abafava os passos na passadeira de veludo bordeaux e as vozes, vindas de baixo, indicaram-lhe o caminho. Tinha imaginado que talvez os pais se parecessem com os pais, mas, a serem aquele casal austero, não se pareciam nada. A senhora, bastante velha, estava vestida de preto com uma blusa branca dejabot onde se aninhava um camafeu. Um cordão de ouro com duas voltas e brincos de brilhantes nas orelhas. O cabelo grisalho estava apanhado com várias travessas de tartaruga e sobre a cabeça tinha um pequeníssimo véu de tule bordado. Margarida pensou que se ela pintasse o cabelo havia de aparentar menos dez anos.
Bom-dia, Margarida. Está muito bonita. Dê-me um beijo, não precisa de estar assustada, disse a mãe com doçura. O pai não lhe vai ralhar por ter dormido até tarde. Nós sabemos que ontem não se sentia bem. Está melhor?, perguntou o pai, dando-lhe a mão a beijar. Estou um bocadinho melhor, obrigada. Queria ter dito obrigada, pai, mas não conseguiu. Sente-se, então. Não abuse das forças. Mariana também estava na sala. E essa sim, era idêntica à sua irmã do mesmo nome. Estava, como ela própria, mascarada de menina antiga e pareceu-lhe que tinha vontade de rir. O Senhor Novais Souza vai escolher-te a ti, tenho a certeza. Faz sentido, Mariana. A sua irmã é a mais velha e está em idade de casar, disse o pai. Espero que se portem impecavelmente. Não quero risinhos nem segredinhos. Correctas, discretas e, quanto a palavras, só as indispensáveis. Que idade terá esse senhor?, atreveu-se a perguntar Margarida. Estará na casa dos cinquenta, como eu. É um homem na força da vida. Está muito conservado. É viúvo, disse a mãe. E não tem filhos. Só um sobrinho que criou como se fosse filho dele. E quem se casar com o Senhor Novais Souza tem que fazer as vezes de mãe do sobrinho?, perguntou Mariana». In Rosa Lobato Faria, As Esquinas do Tempo, Porto Editora, colecção Marca de Água, 2008, 2011, ISBN: 978-972-0-04181-4.

Cortesia PEditora/JDACT