domingo, 25 de outubro de 2015

O Último Távora. José Norton. «Os sobreviventes, atarantados, viram atear-se incêndios sem conta, enquanto a zona ribeirinha era atingida por uma onda gigante que no refluxo arrastou para o fundo do Tejo milhares de pessoas»


jdact e cortesia de wikipedia

O Nome Maldito
«(…).Causou-lhes estranheza a recepção fria que o rei lhes dispensou quando foram ao Paço, logo depois da sua chegada. Não poupou agradecimentos pelo modo como o vice-rei desempenhara a sua missão, mas havia algo de reservado no seu tom, e a recepção não contou com a presença de outros membros da grande nobreza, mais parecendo uma reunião secreta. Também lhes fez espécie a autoridade que o rei delegara num seu ministro, que viam naquele momento pela primeira vez. Era um homem baixo (seria), com uma cara dura e séria onde bailavam dois olhos muito vivos. Falava devagar e, afectando simpatia, anunciou ao marquês que era da sua competência, como secretário da Guerra, comunicar-lhe que estava graduado a partir de então como inspector-geral da arma de Cavalaria dos Exércitos d’El-Rei, pedindo-lhe ainda para lhe comunicar o que tinha custado à sua casa a missão na Índia para ele poder aconselhar ao soberano a maneira mais justa de o compensar. Tratava-se de Sebastião José Carvalho Melo. Só depois vieram a aperceber-se do imenso poder que José I havia delegado nele ao longo do tempo que tinham passado na Índia.
Igual frieza sentiram da parte da rainha quando a cumprimentaram e que contrastava com a confiança e a amizade que lhes dispensava antes de partirem para o Oriente. Que teria ensombrado as relações dos Távoras com a família real? Chegara-lhes aos ouvidos um boato acerca do comportamento da mulher do marquês novo durante a sua ausência em terras da Índia. Podia não ter fundamento e ser mais um dos muitos que nasciam no seio de uma sociedade que se comprazia com a má-língua e as intrigas. Contudo, depois da chegada, o boato transformara-se em dolorosa certeza: pouco depois da saída de Luís Bernardo, ela sucumbira aos rodeios amorosos do rei, transformando-se na sua favorita, numa relação que já nada tinha de secreta. O facto, que para outros de nascimento mais modesto teria constituído quase uma honra ou pelo menos uma oportunidade de melhorar a vida, foi uma afronta para aqueles orgulhosos fidalgos, que olhavam o rei como um igual. Amigos e parentes não deixaram de espicaçar nos Távoras o orgulho ferido, levando o marquês, num assomo de orgulho, a recusar pedir a quem ofendia a honra da família as compensações a que normalmente teria direito pela sua comissão como vice-rei.
Mas o pior estava ainda para vir. O rei não gostou de saber que o marido enganado queria repudiar a mulher e tratava já da anulação do casamento. Chamando os marqueses à sua presença manifestou-lhes o desejo de ver o filho deles retomar a vida conjugal, ao que estes reagiram com energia, proferindo a marquesa palavras duras que um rei não podia suportar sem ofensa. Não obstante, José I ainda mandou fazer uma diligência. Desta vez através do seu ministro Carvalho Melo, o qual lhes mandou um emissário prometendo recompensas se conseguissem convencer o filho a, pelo menos, fingir que a normalidade voltava à sua casa. Ora também já alguém os informara de ter sido o novo ministro um dos que favorecera e facilitara os amores clandestinos do rei. Ainda mais vexados, os Távoras responderam de maneira desabrida, mandando dizer que se via bem a pouca nobreza de quem fazia tal proposta, pois, caso contrário, saberia que a honra de um fidalgo não tem preço. À frieza como o rei passara a tratar os Távoras juntou-se a partir de então o ódio de Carvalho Melo.

Tremor na Terra. Terramoto dos Homens
Na manhã do dia primeiro de Novembro de 1755, ainda Pedro não tinha dois anos, a cidade tremeu. Durante minutos, com um ruído arrepiante e quase sobrenatural vindo das profundezas, a terra tremeu. Palácios, casas humildes e igrejas apinhadas de gente ruíram sepultando os seus ocupantes. Os sobreviventes, atarantados, viram atear-se incêndios sem conta, enquanto a zona ribeirinha era atingida por uma onda gigante que no refluxo arrastou para o fundo do Tejo milhares de pessoas. O palácio dos Alornas, por trás da Sé, também sofreu. Pedro foi tirado de casa pela ama, ou a criada de quarto, que fugiu, esbaforida, para a rua. O pai também saiu logo, mas não vendo mais ninguém, voltou atrás. Teve de forçar a mulher a sair, pois esta por pejo não queria sair para a rua em traje de dormir. Enquanto a filha Leonor entretanto escapava porta fora, João teve de salvar Maria, de forma tão apertada que sempre se disse que fora por milagre. A biblioteca, um dos haveres mais queridos de João, cheia de raridades, foi na maior parte destruída naquele dia negro, juntamente com pratas, móveis e outros tesouros». In José Norton, O Último Távora, Publicações dom Quixote, Livros de Hoje, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-203-398-5.

Cortesia PdomQuixote/JDACT