quinta-feira, 22 de outubro de 2015

A Rosa de Alexandria. Maria L. Meleiro. «A falecida caminhará e falará, o seu corpo estará na companhia dos deuses da Casa Grande do Velho em Anu e aí receberá a coroa de Horus, senhor do género humano…»

Cortesia de wikipedia

«Ninguém me é estranho, se for bom. A natureza é só uma para todos; a diferença está no carácter». In Menandro (342-C.242 a. C)

A morte da águia
«(…) Poderia acontecer estar num ponto do caminho um chacal solitário, tentado pelas oferendas dos sacerdotes. Ouvir-se-ia um uivo horrendo talvez várias vezes de seguida, cada um deles num tom ligeiramente mais elevado do que o anterior, dando a sua própria versão do lamento dos coros. Depois desapareceria nas profundezas da Terra sem deixar rasto. Seria o sinal. Numa câmara à entrada do túmulo, sobre a areia, cinco sacerdotes, duas sacerdotisas representando Isis e Néftis, o inconsolável Ptolomeu Filadelfo, irmão e esposo da falecida, o jovem Ptolomeu, filho de Arsínoe e de seu primeiro esposo Lisímaco, rei da Trácia, procederiam às cerimónias de abertura da boca e dos olhos, praticadas sobre a múmia. Com isto pensavam os egípcios devolver ao corpo a sua sombra, ou Kaibit, que se ausentara por ocasião da morte. Segundo eles, estas cerimónias tornavam-se necessárias para a restauração das funções que o corpo da defunta possuía na Terra. A falecida caminhará e falará, o seu corpo estará na companhia dos deuses da Casa Grande do Velho em Anu e aí receberá a coroa de Horus, senhor do género humano, ecoaria a voz do principal sacerdote oficiante, o Querheb, segurando o rolo de papiro na mão. Um intenso e inebriante odor proveniente dos grãos de incenso no turíbulo envolveria os presentes.
Seriam então reveladas as palavras de poder. Era preciso pronunciá-las de forma correcta para que produzissem o efeito desejado. Disso se encarregaria o sacerdote em seguida. Deste modo, a rainha morta poderia transformar as substâncias perecíveis em imperecíveis e abrir as portas da percepção em Duat, o mundo das sombras. A notícia da morte da rainha Arsínoe espalhara-se na cidade de Alexandria. Uma multidão heterogénea invadira as ruas principais. Viam-se homens de barba frisada, magnificamente enfeitada com fios de ouro e prata e, aqui e ali, mulheres maduras cuja pintura dos olhos invariavelmente derretia nos locais menos convenientes, escorrendo ao longo da superfície da pele e manchando as suas vestes de linho; homens na flor da juventude transportavam discretamente pequenas bolsas contendo o último grito em matéria de preservativos, confeccionados com tripa de carneiro, ou similar, os olhos mais fixos nos bandos de raparigas do que nos acontecimentos ou nas notícias sobre o cortejo fúnebre. As crianças encavalitavam-se aos ombros dos pais, transportadas com mais cuidado do que as estátuas dos deuses pelos sacerdotes. Desejosos de voltar para casa, viajantes deambulavam esgotados, saciados de multidão.
Tal como frequentemente sucede quando uma grande massa se aglomera, logo alguns discretos vendedores surgiram não se sabe donde, oferecendo lentilhas e sopa de cebola, amuletos e jóias, algumas provenientes do saque dos túmulos antigos, e pães confeccionados em forma de animais, alguns com motivos algo ousados e até obscenos. A verdadeira morte de Arsínoe iria consumar-se, porém, com o apagamento da própria dinastia, que com ela conhecera os seus momentos mais faustosos. Tornou-se um sangue maldito que deixou cair o ceptro perdendo-se em lutas fratricidas, quando a multidão das concubinas oficiais, das esposas rainhas e das numerosas contestações armadas pôs em constante perigo o exercício do poder, legitimando toda a espécie de ambições. Da primitiva simplicidade de comportamento e de traje, diádocos e epígonos iriam evoluir para a complexidade de uma brilhante vida de corte, patente entre os Lágidas do Egipto, embora entre os Antigonidas, mais próximos das origens, e os Atálidas, de baixa extracção, se conservasse um gosto por uma modéstia mais helénica.
Os deboches, os crimes, os incestos, os assassínios a soldo, actos torpes que depois se iriam tornar regras dinásticas, marcariam com um ferrete sangrento a cidade fundada por Alexandre, consubstanciada na sua forma perfeita nos planos de Dinócrates de Rodes. O neto de Filadelfo, Ptolomeu Filopator, tornar-se-ia num joguete nas mãos da amante Agátocleia e do favorito Agátocles, irmã e irmão, que exploravam a sua volúpia. Manipulado pelo seu sinistro conselheiro e ministro Sosibios, Filopator morre aos trinta e nove anos arruinado pelos deboches, assassino de sua mãe Berenice, de seu tio Lisímaco, de seu irmão Magas e de sua esposa e irmã Arsínoe. Dizia-se até que a mão criminosa de Agátocleia, a concubina real, não fora estranha ao homicídio da malograda Arsínoe.
Nada do que Aristóteles idealizara nas suas lições, nem do plano cultural e político de Alexandre faria prever uma tal evolução. Não obstante, não são os escritos políticos do Estagirita que nos fornecem os modelos para a análise dos factos políticos. E a Poética. Isto na medida em que tanto a política como a tragédia utilizam o mesmo modelo de construção. Não no sentido do teatro político como cena enganadora, sediciosa, simples faz-de-conta, espelho deformador e perverso da essência do real; não como perícia em confundir o que é apresentado e mostrado na cena política com a verdadeira realidade. É fundamentalmente pela criação de uma superfície agitada de emoções tendentes a despertar o medo e a piedade, na origem do desenvolvimento do espectáculo da cena trágica, que a política e a tragédia dão as mãos. O aquecimento dos humores conseguirá a cura e libertação dos males através da catarse trágica provocada pelas emoções do espectáculo, é o que pensa o filósofo». In Maria Lucília Meleiro, A Rosa de Alexandria, tradução de João Lourenço, Grandes Narrativas nº 192, Editorial Presença, Lisboa, 2002, ISBN 972-232-961-8.

Cortesia de EPresença/JDACT