quinta-feira, 29 de outubro de 2015

As vésperas esquecidas. Maria I. Barreno. «Bárbara ouvia, pensava que o marido exagerava, mas logo via a sombra do medo à volta dele, não há palavras para enxotar este medo, concluía, arrumava a cozinha, deitava-se»

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«(…) Como os discos voadores; ou podia ser que não existissem espíritos esvoaçantes, ou que, mesmo existindo, estivessem num mundo completamente fora do nosso alcance, o mundo para além da morte para onde íamos todos, e podia ser que as nuvens de orações e a graça dos milagres fossem forças tão naturais como as das chuvas e ventos. Alguma coisa terá que mudar isto, pensava. E continuava a sacudir almofadas, a manter o mundo. O marido sofria de insónias, principalmente quando se aproximava o fim do mês e os trabalhos de fecho de contas, muita responsabilidade, dizia, muita, muita, e se me engano, em cinquenta escudos que sejam, terei que os pôr do meu bolso, e sei lá que dúvidas irão nascer na cabeça do chefe, dos patrões, eles são capazes de desconfiar de tudo, até da sombra deles, quem não tem a consciência tranquila é assim, eles lá sabem o que os remói, cá para mim é o medo, o medo, e à conta do medo nunca se sabe do que são capazes, quem sabe se não iriam denunciar, se não denunciaram já um empregado à Pide por enganos de cinquenta escudos ou menos, podem logo pensar que é insubordinação ou subversão política. Bárbara ouvia, pensava que o marido exagerava, mas logo via a sombra do medo à volta dele, não há palavras para enxotar este medo, concluía, arrumava a cozinha, deitava-se. Na noite de 24 de Abril de 1974 andava ele para cá e para lá na casa, matutando e resmungando estes pensamentos. Sentava-se numa poltrona, cochilava um pouco, acordava em sobressalto, punha o rádio para se entreter, para ter uma companhia na noite, uma voz amiga, como dizia o locutor e ele encolhia os ombros mas aceitava, no meio do escuro, da solidão e do medo qualquer voz é amiga. Foi assim que ouviu o comunicado. Ou que não ouviu, o começo. Sobressaltou-se: um golpe do exército? O que foi que disseram? Aproximou-se do rádio, baixou o som, não fosse o diabo tecê-las, pôs-se à escuta com o ouvido quase encostado ao aparelho. Com o nervoso parecia-lhe que o locutor gaguejava, era o ouvido dele que gaguejava, se assim se pode dizer: as forças armadas estão a tomar conta da situação, rádios e aeroporto ocupados, pede-se calma à população, que se mantenham em suas casas e aguardem. Bárbara, Bárbara, ofegou ele junto à cama, não porque a casa fosse grande e ele tivesse corrido muito da sala até ali, mas a emoção, outro medo, outra esperança, diferentes do habitual, atabalhoava-lhe a respiração. Bárbara estremunhou e nesse entre cá e lá sonhou-pensou que finalmente chegava o apaixonado fogoso que lhe tinham anunciado nos livros. A paixão ardente sacudia-a. Mas os sacões continuaram, acorda, acorda Bárbara, dizia o marido, houve uma revolta do exército, mas eles não dizem se é da direita se é da esquerda, imagina que são aqueles doidos mais à direita do Marcelo, os generais velhos que têm andando por aí a conspirar e a suspirar pelos tempos do Salazar. Bárbara acordou. Nada ouviu, só silêncio. Mas sentiu. Sentiu o salto de alegria que se erguia em toda a cidade. Os homens, os soldados e os capitães tinham deixado as mortes e as sombras de onde só se ouviam cochichos, tinham deixado o tal mundo oculto onde os homens buscavam uma liberdade incerta só para si, tinham saído para a luz, tinham transformado a guerra, as rapaziadas, as arruaças, numa decisão, numa revolta, enfim. Sorriu: já não era a esperança, era a certeza. Obrigada, Virgem, por este mundo mais suave e luminoso. Saltou da cama, começou a vestir-se, vamos para a rua, vamos ver Não, disse o marido, eles recomendam-nos que fiquemos em casa, e nem sabemos do que se trata, prà rua como, imagina que isto é golpe dos extremistas e eles se lembram de prender todos os que apanharem na rua. Bárbara continuava a vestir-se, se quiserem prender-nos podem vir cá a casa. Para isso era preciso um propósito, uma denúncia, a polícia não tem nada contra nós, aqui nunca se lembrará de vir, mas os que andam na rua, os que caem sob o olhar de qualquer horda de fanáticos estarão em grave perigo, é a isso que se chama execuções sumárias». In Maria Isabel Barreno, As Vésperas Esquecidas, Editorial Caminho, Lisboa, 1999, ISBN 972-211-248-1.

Cortesia ECaminho/JDACT