Texto Crítico do Manuscrito. Livro Dois
«(…) Só então pôs os
olhos na mulher, que se calara de cantar, e saudou-a com reverência, e às
outras três também. Elas responderam à saudação e perguntaram, Qual é teu nome,
e ele disse. Aí começaram a conversar elas e ele, e a mulher que cantara é que
mais lhe fazia perguntas e lhe dava respostas, e Roger, quando soube que vinham
em romaria à ermida de Byes, logo imaginou-as sensatas, devotas, prudentes e
cheias de bondade, e aquela mulher em especial mais que as outras, e num piscar
de olhos caiu enamorado dela. A mulher que cantara era Marguerite Reynespagne,
e dali em diante ambos os dois começaram a passar muito tempo juntos,
conversando juntos sobre muitas coisas, quer coisas do céu, quer da terra. A
ela bem que agradou a companhia de Roger, que andava na flor da juventude e era
tão formoso que ela não supunha que houvesse outro igual. Letrada era só um
pouco, mas entendia algum latim e, quando ele a ouviu dizer, Inter vana,
nihil vanius est homine, isto é, entre
as coisas fúteis, nada há mais fútil que o homem, e outras tais
palavras como essas, maravilhou-se muito e amou-a ainda mais. Uma vez
perguntou-lhe sobre o seu marido Bursegaunt; ela respondeu com doçura que o
marido era um ancião e que a idade o levara de volta à infância e, doente e
decrépito, lançava o fluxo de suas purgações no leito e por todo o canto, como
criança de berço.
Roger abriu bem as
orelhas para sorver-lhe as palavras e gostou de ouvir aquele relato, pois sua
imaginação lhe disse que essa boa mulher não saía de perto do marido, servindo-o
humilde como uma camareira: e em sua imaginação ele a viu tal como uma santa na
terra. Bem podia ela parecer uma santa, mas de santa não tinha nada por dentro,
pois, ao contrário do que aparentava, era matreira e maliciosa como a senhora
de Anvil e todas as outras. Uma noite, quando essas mulheres estavam no salão
com sir Roger e frei Hugh, e Amidieu com eles, mas não Katherine, que fora a
Mons visitar a madrinha, o frade disse que nunca vira tantas belas mulheres
reunidas juntas a bem da virtude e da caridade. Por São João, disse a senhora de
Danvil, também temos outros propósitos em nossa viagem. Ao que lady Marguerite
disse que as palavras do frade trouxeram-lhe a relelembrança de uma história da
bela Isolda, e tanto a incitaram todos a contá-la que ela começou assim:
Como bem sabeis, nos antigos dias do rei Artur a fada Morgana tinha ódio
mortal a sir Lancelote. E, quando soube que sir Lancelote e a rainha Guinevere
tinham um amor verdadeiro um pelo outro, mandou ao rei Artur uma bela taça toda
guarnecida de ouro, e o poder da taça era que nenhuma mulher seria capaz de
beber daquela taça a não ser que fosse fiel ao marido: se lhe fosse infiel,
cuspiria toda a bebida no chão. Ora, aconteceu que o mensageiro da fada Morgana
topou no caminho com sir Lamorac, que o forçou a dizer a causa por que levava consigo
aquela taça. E, quando sir Lamorac soube do poder que tinha a taça, pensou em
usá-la para pôr à prova a bela Isolda, mulher do rei Marcos, pois suspeitava dela
com sir Tristão. E disse ao mensageiro, Se não queres morrer, leva essa taça
não ao rei Artur mas ao rei Marcos. E diz ao rei Marcos que lhe mando a taça para
ele pôr à prova a sua mulher e saber se lhe é fiel ou não. O mensageiro pôs-se
a caminho do palácio do rei Marcos e lá chegado contou-lhe a sua aventura com sir
Lamorac e qual era o poder daquela taça. Então o rei mandou a rainha Isolda
beber da taça, e uma centena de outras mulheres também: e só houve quatro
dentre elas que beberam direito: todas as outras, e a rainha junto com elas,
cuspiram a bebida em sinal de que não eram fiéis aos maridos. Que grande
afronta, bradou o rei, e jurou solenemente que faria queimar a rainha e as
outras mulheres na fogueira. Mas os cavaleiros do reino juntaram-se contra ele,
dizendo que não deixariam queimar mulher nenhuma por causa de uma taça feita
por feitiçaria pela mais falsa de todas as feiticeiras e bruxas que havia no
mundo, pois daquela taça nunca viera nada de bom, mas só rixa e discórdia, e Morgana
sempre durante a sua vida fora inimiga de todos os verdadeiros amantes.
E foi assim que a bela
Isolda e as outras mulheres da corte do rei Marcos escaparam à fogueira. Por
minha alma, disse a senhora de Danvil, se a nós mulheres de Danvil nos
mandassem beber dessa taça, dentre cem de nós, nem quatro, nem duas, nem uma só
sido capaz de beber sem lançar toda a bebida ao chão! Amidieu ficou muito
confuso com toda essa conversa e não sabia o que pensar nem dizer. E ainda mais
confuso ficou quando, pouco depois, ouviu Lady Marguerite contar a história de
Bursegaunt seu marido e das três mulheres de que fora amante de todas elas ao
mesmo tempo. Essas três mulheres eram todas primas e um dia sentaram-se juntas
e puseram-se a conversar, até que uma hora uma delas disse: maldita aquela
que não responder agora, em nome da boa amizade que há entre nós três, à
pergunta que lhe será feita, isto é, se teve algum amante ou não este ano.
Concordaram todas em responder, e a primeira delas disse: na verdade, eu tive;
e a segunda e a terceira disseram o mesmo. Agora, disse a mais petulante, que
dentre as três fora autorizada pelas outras a ser naquele dia rainha delas (era
costume entre as mulheres da época escolher uma delas como rainha das outras, cabendo-lhe governá-las nos jogos e brincadeiras
daquele dia), mal amada aquela que não disser o nome do último amante que teve».
In
Alan Dorsey Stevenson, O
Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen, Julho de 2012, Vitória
Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca Pública do
Espírito Santo, 2011.
Cortesia de
Jazzseen/JDACT