sexta-feira, 23 de outubro de 2015

A Rosa de Alexandria. Maria L. Meleiro. «As mais belas tragédias, diz Aristóteles, são aquelas que se debruçam sobre um pequeno número de famílias (...) às quais aconteceram grandes infortúnios, histórias que são do conhecimento de todos»

Cortesia de wikipedia

«Ninguém me é estranho, se for bom. A natureza é só uma para todos; a diferença está no carácter». In Menandro (342-C.242 a. C)

A morte da águia
«(…) Não basta, porém, a mera agitação dos sentimentos humanos, que nada tem de trágico, insiste. É preciso que o medo e a piedade, despertados pelo infortúnio imerecido sofrido por alguém, envolvam o reconhecimento do profundo sentimento de injustiça que precipita na desgraça aquele que é vítima de um erro irreparável. Alguém que poderia estar sob a nossa própria pele. Só esta condição nos poderá fazer tremer. Será que a posteridade fez justiça à memória de Arsínoe Filadelfa? Os testemunhos dos que reavivaram a memória da emética, dois ou quatro séculos depois da sua morte, em nada são lisonjeiros. Mas será que tudo poderia ter acontecido de outro modo? As mais belas tragédias, diz Aristóteles, são aquelas que se debruçam sobre um pequeno número de famílias (...) às quais aconteceram grandes infortúnios, histórias que são do conhecimento de todos. A casa real da Macedónia, ligada aos Lágidas do Egipto, uma família de origem lendária e antepassados míticos, nada menos que Hércules e Aquiles - possui todas as condições. O bisavô de Alexandre, o rei Arquelaus da Macedónia, em cuja corte de Pela Eurípedes teria redigido os seus últimos trabalhos, perece, não como o rei Penteu vitimado pelo furor das Ménades incitadas por Dioniso, mas às mãos de um amante. Amintas, o filho que lhe sucede, amigo de Nicómaco, é morto por sua mulher, a infiel Eurídice. Filipe da Macedónia escapa por algum tempo à fúria de Olímpia, mas seu tio Perdicas quase sucumbe à nova Medeia. Sacerdotisa de um culto de mistério, Olímpia armará o braço do assassino de Filipe, pai de Alexandre. Depois será a vez da outra esposa de Filipe, de seu filho Arrideu e de Eurídice que o desposara, ocupando o casal o poder depois da morte de Alexandre.
Com os olhos postos no cobiçado trono da Macedónia, Ptolomeu Ceraunos, afastado do trono do Egipto pelo pai, Ptolomeu Sóter, assassina os dois filhos adolescentes da meia-irmã Arsínoe. Esta instigara o marido, Lisímaco da Trácia, a mandar executar o filho Agátocles por traição. Incapaz de erguer a mão contra o seu próprio sangue, Lisímaco entrega-lhe a responsabilidade do desenlace final. Arsínoe, depois de uma tentativa gorada de envenenamento do enteado, tece enredos destinados a persuadir Ceraunos ao homicídio. Agátocles perece. Arsínoe ficará na história como a nova Fedra, a da alma doente que, não podendo querer o bem, em consciência não se atreve a seguir o mal. Em nada desmerecem dos Átridas. Quem poderá falar daquele que partiu para o mundo dos mortos deixando atrás uma sombra. Esta vai-se desvanecendo cada vez mais para os que ficaram, os quais, privados da saudosa presença, vão paulatinamente reunindo todos os incidentes, todas as coisas, todos os rostos que o falecido amou ou odiou, juntando-os amorosamente para depois os erguer como obstáculos à absorção ou troca da memória. Desde a morte da rainha Arsínoe Filadelfa que Ptolomeu correra a refugiar-se nos braços da cortesã Bilistiqué. Afastada pela rainha, que não tolerava qualquer influência feminina junto do esposo-irmão além da sua, Bilistiqué brilhava de novo na corte alexandrina.
Era uma mulher já madura, que dissimulava a idade sob uma espessa camada de pintura no rosto, onde brilhavam uns olhos opacos e escuros de expressão rapace e selvagem mascarada de pretensa ingenuidade, abrindo-se lentamente assim como os de um boi, acentuadamente sublinhados por escuros traços de khol. Ainda esbelta, os seios duros, o seu corpo musculoso e reluzente como mármore novo estava acostumado ao rude desporto das corridas de carros; apresentava-se com frequência vistosamente coberta de véus transparentes, umas vezes azuis outras vermelhos, os quais, desprendendo-se da túnica, a envolviam numa aura colorida que de longe chamava a atenção. A sua intimidade com o rei datava dos recuados tempos da primeira Arsínoe. Não obstante, o Filadelfo jamais permitira que se imiscuísse nas suas decisões. Forçada a uma presença decorativa e submissa, tão contrária ao seu desejo de não passar despercebida, Bilistiqué apresentava como único vestígio possível da forte e voluntariosa personalidade que a animava a garridice no trajar, a teatralidade dos modos e um vasto e intenso odor a metópio, mirra, gálbano, cardamomo, tudo na medida exacta, hábil criação de um inspirado perfumista da corte. Era porém no hipódromo de Alexandria, e no leito do rei, que Bilistiqué desfrutava dos seus momentos de maior glória, sensual e selvagem, a cabeleira solta e a túnica erguida acima do joelho, fustigando os cavalos do desejo. Soubera sempre manter-se no seu lugar, mesmo quando era mais jovem e gozava dos favores do rei. Agora, porém, ostentava ares de rainha, exibia uma personalidade fora do comum, e pretendia até descender dos Átridas, ainda que toda a gente soubesse de sobejo quão obscuras eram as suas origens». In Maria Lucília Meleiro, A Rosa de Alexandria, tradução de João Lourenço, Grandes Narrativas nº 192, Editorial Presença, Lisboa, 2002, ISBN 972-232-961-8.

Cortesia de EPresença/JDACT