segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Esboço para um possível Ensaio sobre Fiama Hasse Pais Brandão. Márcio L. Dantas. «… da plena realização humana sempre permanecerão como limitações, a começar pela linguagem, nunca dando conta do que sentimos, rememoramos ou imaginamos»

Cortesia de wikipedia

«Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar». In Roland Barthes

«(…) Embora tenha se pautado sempre por construir uma espécie de poesia sem confessionalismos, a impessoalidade e o distanciamento não anularam a matéria-vida da qual os poemas estão impregnados, sobretudo das imagens extraídas da natureza e sua dinâmica, configurando uma belíssima síntese de um saber, da poesia como forma de acesso ao real, tendo sido arrancada da experiência mais intensamente contemplada e vivida, decalcando um conhecimento essencial capaz de universalizar-se na trágica consciência de que alguns elementos impossibilitadores da plena realização humana sempre permanecerão como limitações, a começar pela linguagem, nunca dando conta do que sentimos, rememoramos ou imaginamos. Com efeito, mesmo sendo detentora de uma produção poética de grande envergadura, que se estende num amplo arco que vai da poesia lírica, como já dissemos, passando pelo romance, indo até à tradução em diversas línguas e ao ensaio de natureza académica, a poeta não foi ainda suficientemente estudada, apesar da cena literária portuguesa tê-la reputado como uma das mais altas vozes da contemporaneidade, haja vista ter sido contemplada com quase todos os mais importantes prémios literários de Portugal. Foi sobremodo reconhecida nos últimos anos da sua existência, no qual demonstrou nos seus derradeiros livros publicados um preciso domínio da arte da manufactura poética.
A trajectória da sua poesia se inscreve de maneira muito interessante, fincando-se de maneira singular e bem distinta da poesia produzida no seu entorno, pois partindo de textos bastante herméticos, estruturados numa depuração formal e num rigor sobremaneira influenciado pelos movimentos de vanguarda, que intentavam uma renovação da linguagem poética por meio do retorno ao significante, da palavra em sua carnadura concreta, a preocupação de ressaltar a palavra isolada ou em sintagmas mais minimalistas, tais como propugnava a poesia Concreta ou Espacial, que se caracterizava por ser antidiscursiva, evidenciando o signo linguístico quase sempre de maneira sintética ou isolada. Após essa fase, Fiama Brandão encerra a sua obra com livros nos quais podemos encontrar uma poesia de factura simples e com levado nível de reflexão acerca do homem e sua presença no mundo. Assim sendo, embora tenha se expressado de maneira ostensivamente engajada nos temas que representavam as inquietações do seu tempo, sempre numa perspectiva filosófica e universalizante, a autora nunca buscou um registo panfletário e excessivamente explícito com relação aos referentes manuseados em sua obra. Com efeito, mesmo tratando de temas de natureza histórica ou mitos da nacionalidade portuguesa, a poeta os aborda sob novo prisma, quase sempre crítico, nunca se deixando seduzir pela mesmice ou pela gramática mítica, que anseia por ser ritualizada e perpetuada, fortalecendo os mecanismos dos processos ideológicos no Imaginário. O fenómeno poético pode ser entendido não apenas como detentor não apenas de uma específica organização da linguagem, voltada sobre si mesma, como é, mas também é capaz de reter nas suas malhas elementos subtilmente denunciadores de imagens arquetípicas integrantes do património cultural da humanidade. Ora, é justamente a partir desses múltiplos semantismos contidos nas imagens articuladas nos poemas que podemos afirmar a poesia como um lugar para onde convergem, como se houvesse uma espécie de força centrípeta na qual as imagens são atraídas com a intenção de compor um sistema homogéneo de elementos: o conjunto de invariantes antropológicas universais.
Tudo o que viemos até agora dizendo nos leva à seguinte conclusão: da mesma maneira como é possível pensar por palavras, também é possível pensar por imagens. A partir do momento em que se organiza um texto, não tendo apenas como suporte a linguagem verbal escrita, como fomos habituados, levando-nos a um esforço de abstracção tendo como ponto de partida um sistema secundário (o poema, o livro de poemas) estruturado já a partir de um sistema primário (a linguagem verbal), ao fazer uso do ikon e do logos simultaneamente, a metáfora permite que uma imagem ou uma constelação de imagens aflorem com mais nitidez na consciência. Mas, se dermos uma olhada na história da escrita, constataremos que as letras foram decalcadas inicialmente de imagens pintadas: pictogramas, hieróglifos, ou seja, o poema devolve às palavras a força original de ter sido arte plástica, de ter sido ícone, antes de se tornar um código sistematizado, e instituído convencionalmente, formado por signos abstraídos de forças ou elementos advindos da natureza contemplada e vivenciada pelos nossos antepassados.
Porém, o mais importante de tudo sobre o que acima discorremos é o facto de a imagem literária ser o lugar privilegiado da organização e da transmissão das imagens depositadas no imaginário colectivo, visto que ela, a imagem literária, é um veículo sem peias nem freios de ordem alguma, seguindo a sua própria gramática, que é a de articular sentidos sem se submeter ao que se encontra instituído como lógica aristotélica-cartesiana. Prova dessa altiva liberdade é a maneira como a poesia contemporânea trata a gramática normativa ou a língua vernacular. A poesia pouco está ligando para essas duas instituições, com seus limites impositores de uma determinada maneira de enunciação ou comportamento. Quem sabe, a poesia contemporânea não tenha esquecido a criativa e frutífera lição do linguista Roman Jakobson, conclamando ao enlace dos dois domínios, Poética e Linguística, a juntarem seus conhecimentos visando à análise e interpretação da poesia. Mesmo porque a Linguística, como campo do conhecimento que tem como objecto de estudo as línguas naturais, nunca teve pretensões de prescrever nada, mas apenas de descrever, instaurando-se como um espaço de liberdade para as diversas variantes de uma mesma língua, visto que as considera todas num mesmo patamar, quer seja uma língua de um país da Europa, quer seja a língua dos índios Yanomamis, habitantes dos lugares mais recônditos da floresta amazónica». In Márcio Lima Dantas, Esboço para um possível Ensaio sobre Fiama Hasse Pais Brandão, Departamento de Letras da UFRN, Tópicos de Literatura Portuguesa II, Wikipédia, Poesia 61.

Cortesia de DLdaUFRN/JDACT