domingo, 25 de outubro de 2015

O Último Távora. José Norton. «Leonor foi dotada de uma inteligência excepcional e de um espírito livre, vivo e cheio de curiosidade. Brilhou nas letras desde pequenina e ainda hoje é conhecida pelo seu pseudónimo literário de “Alcipe”»

jdact e cortesia de wikipedia

O Nome Maldito
«Numa manhã chuvosa de Janeiro, uma espessa fumarada negra subiu no céu de Lisboa, ao som de gritos de desespero. Junto ao Tejo, em Belém, no meio de indizíveis tormentos, morriam os marqueses de Távora e os seus filhos. Os corpos, meio desfeitos pelo suplício e misturados com alcatrão, arderam até ao cair da noite. Pedro Almeida Portugal não ouviu esses gritos nem viu o fumo que se confundia com as nuvens baixas, carregadas de chuva. Percebera, recordando o semblante preocupado do pai, da última vez que o vira, e por as lágrimas que sua mãe chorava nesses dias, que qualquer coisa triste estava a acontecer. Mas desconhecia ainda o que fosse a morte. Só não compreendia porque o tinham separado dos seus. Primeiro, tinham levado o pai. Depois, passados alguns dias de o haverem fechado com a mãe e as irmãs num casarão lúgubre para os lados de Cheias, tinham-no trazido de volta à casa de família, que por ironia se situava numa rua chamada da Boa Morte, onde só estavam os criados, um padre que lá vivia e um homem que tratava dos papéis da casa e das propriedades. Era um menino de cinco anos e estava só. Vivo e em liberdade, sobrevivia à fúria que acabava de lhe devastar a família. Pedro nasceu em 16 de Janeiro de 1754 no palácio em que viviam os pais na encosta soalheira do monte do Castelo de S. Jorge, próximo do Limoeiro. Era o terceiro filho de João Alorna e de dona Leonor, uma das filhas dos marqueses de Távora.
Para quem esperava há sete anos por um rapaz, foi uma dupla alegria. Dona Leonor só tivera até aí raparigas. As musas da poesia abençoaram o nascimento da primeira. Leonor, como a sua mãe, foi dotada de uma inteligência excepcional e de um espírito livre, vivo e cheio de curiosidade. Brilhou nas letras desde pequenina e ainda hoje é conhecida pelo seu pseudónimo literário de Alcipe. A outra irmã de Pedro, Maria, ou Mariquita, como carinhosamente a tratavam na intimidade, igualmente dotada mas sem a excelência da irmã, distinguia-se pela sua grande bondade, alegria e bom feitio. João Alorna tinha recebido uma educação que não era vulgar entre os fidalgos daquela época, os quais, na maioria dos casos, desprezavam os estudos e as letras. Com dezassete anos, o pai mandou-o estudar em Paris, onde esteve sob a protecção do embaixador junto da corte de França, Luís Cunha, um dos espíritos portugueses mais brilhantes do século XVIII e tão livre de preconceitos que fazia vida comum com uma judia holandesa por quem se apaixonara, causando com isso grande escândalo na corte portuguesa.
À casa deste diplomata vinham professores do Collège Royal dar lições ao jovem fidalgo, e foi-se familiarizando com os estudos mais actualizados no campo da Matemática e da Física, o que lhe permitia discorrer com facilidade sobre as teorias de Newton e Descartes. Entusiasmou-se particularmente com a ciência dos astros, depois de ter assistido à conferência em que sábios franceses recém-chegados de uma expedição aos Andes, no Peru, apresentaram os resultados das suas observações sobre a forma e diâmetros da Terra, que contrariavam alguns pontos de vista de Descartes. O diplomata português, muito prestigiado em Paris, conseguiu que João Alorna fosse tratado com a deferência que se desejava para um grande nobre de Portugal. Foi apresentado ao rei Luís XV e à restante família real, que voltaria a cumprimentar quando, três anos mais tarde, voltou para Portugal. Nessa altura, os infantes encarregaram-no de transmitir os seus recados e levar lembranças para uma irmã que vivia então na corte de Madrid. João deixou-se conquistar pela cultura da grande capital europeia e soube apreciar os costumes e o modo de vida dos franceses. Em França, dizia ele, talvez com algum exagero, que tudo se tratava com franqueza e não se conheciam as coisas senão quando se falava claro.
Naturalmente, viria a estranhar depois do regresso o ambiente que veio encontrar em Portugal, onde imperava um formalismo inibidor e os rodeios se substituíam à frontalidade. Tropeçando em etiquetas e hábitos que já lhe pareciam bárbaros, sofreu com a mesquinhez da sociedade portuguesa, onde não via mais que murmurações e uma inveja devorante, sentindo, ele também, a desconsolação com que vivem em Portugal todos os que saíram. Era o retrato de um estrangeirado, como se chamava então àqueles que, em consequência do contacto com outras culturas, ganhavam essa perspectiva crítica em relação ao seu país natal. João, contudo, não deixava também de ter as suas reservas. Ainda que fosse um homem das Luzes, cultivado e, para a sua época, um espírito moderno, havia nele um sentido aristocrático que acabava por se sobrepor a tudo o mais. Como primogénito e herdeiro de uma casa da grande nobreza, ele conhecia e aceitava os preceitos que regiam as tradicionais relações entre essa nobreza e a corte. Apesar de ele mesmo afirmar que ser vassalo de rei pequeno é ser verdadeiro escravo, como vassalo se assumia, pois a verdade era que sem a protecção real não seria possível a perpetuação da sua casa, objectivo que norteava a vida de todos os primogénitos nobres. Era a regra da Grandeza, como se denominava o conjunto de famílias nobres, que, a troco de total submissão ao rei, monopolizavam o seu favor, traduzido em privilégios e benesses materiais, que lhes permitiam viver com uma dignidade que nalguns casos se confundia com simples ostentação. E, sem necessidade de demonstração, ele acreditava, como se fosse um dogma, que a Grandeza era naturalmente, por nascimento, a classe mais digna de servir directamente o soberano, ocupar os ofícios próprios da corte e fazer a guerra, comandando tropas, quando tal fosse necessário. Contudo, não havia em João Alorna soberba ou arrogância, e ele considerava, e assim o inculcou na família, que a Grandeza tinha a responsabilidade de dar exemplo às outras classes, devendo cultivar qualidades como a justiça, a caridade, o respeito pelos outros, e observar os preceitos humanistas da religião cristã. João, apesar dos interesses que presidiam aos arranjos matrimoniais daquela época, conseguiu casar por amor. Ao voltar de França para tomar conta da administração dos bens da casa foi confrontado com a combinação de um casamento com uma prima, herdeira rica, mas gorda, feia e mais velha do que ele dez anos. Contrariou, contudo, a vontade dos pais, argumentando com a desproporção que havia entre eu e a dona Madalena, trinta e dois anos contra dezanove. Ele, uma filigrana, comparado com uma estrutura gigantesca e uma gordura quase disforme. Daí para a infidelidade e a corrupção do matrimónio seria um passo, dizia ele, porque bem podia resultar daí que o Demónio encontrasse, na sua desconsolação, matéria que o levasse aos maus caminhos». In José Norton, O Último Távora, Publicações dom Quixote, Livros de Hoje, Lisboa, 2007, ISBN 978-972-203-398-5.

Cortesia PdomQuixote/JDACT