sábado, 10 de outubro de 2015

Alguns aspectos da vida universitária em Coimbra nos meados do século XVI (1548-1554). Américo C Ramalho. «O conde de Alcoutim, Pedro Meneses, não era professor universitário, mas um jovem aristocrata, discípulo do humanista italiano Cataldo Parísio Sículo»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Conferência feita na Associação Portuguesa de Estudos Clássicos, em Coimbra, em 29 de Abril de 1981. Algumas das fontes, nomeadamente, o testemunho de Martin Azpilcueta Navarro, o das Actas dos Conselhos da Universidade de Coimbra e o de Inácio Morais no Conimbricae Encomium já foram utilizados por Teixeira Carvalho em A Anatomia em Coimbra no século XVI, Alonso Rodriguez Guevara, Revista da Universidade de Coimbra, vols. II (1913), III (1914), IV (1915), V (1916), trabalho aproveitado por Joaquim de Carvalho na sua edição das Noticias Chronologicas da Universidade de Coimbra escriptas pelo beneficiado Francisco Leitão Ferreira, Segunda Parte, Volume I, Coimbra, 1938, p. 609 e seguintes».

Na história da Universidade, depois da sua última transferência para Coimbra, o ano de 1548 é dos mais significativos. Foi um ano de orações académicas. Assim, em 21 de Fevereiro, na véspera do começo das aulas (pridie quam Ludus aperiretur. IX. Cal. Martii. MDXLVIII), pronunciava Arnaldo Fabrício a sua celebrada oração inaugural De Liberalium Artium Studiis Oratio in Gymnasio Régio, isto é, no Colégio das Artes Conimbricense, fundado nesse mesmo ano por João III. Em 17 de Julho também de 1548, quando o Infante Luís visitou Coimbra, saudou-o em nome da Universidade, o mestre de Retórica João Fernandes num discurso intitulado De Celebritate Academiae Conimbricensis, Sobre a Fama da Universidade de Coimbra. O orador desenrolou perante os olhos e ouvidos do irmão do Rei, as glórias do corpo docente universitário, referindo, com maior ou menor extensão, o currículo e os méritos de mestres como os teólogos Afonso do Prado, Marcos Romeiro, frei Martinho de Ledesma e Paio Rodrigues Vilarinho, os canonistas Martinho Azpilcueta, o doutor Navarro, João Morgovejo e Fábio Arcas Nârnia, os juristas Manuel Costa e Ascânio Escoto, os médicos Rodrigo Reinoso, Francisco Franco e António Luís, o matemático Pedro Nunes, os mestres de Artes, Gaspar Bordalo, Vicente Fabrício Eusébio.
Finalmente, ainda em 1548, a 1 de Outubro, que era então o dia de abertura solene das aulas, dia de São Remígio (la Saint-Remy dos franceses), falou De Disciplinaram Omnium Studiis Oratio ad Uniuersam Academiam num elogio de todas as matérias ensinadas na Universidade e no Colégio das Artes, o professor desta última escola, Belchior Beleago. Deve notar-se que no princípio do século, quando a Universidade estava em Lisboa, a abertura solene do ano lectivo se fazia a 18 de Outubro, dia de São Lucas. Estas orações contêm dados importantes sobre pessoas e coisas do meio universitário conimbricense, em meados do século XVI. Não são, porém, como actividade académica, a inovação que durante muito tempo se julgou terem sido. A prática vinha já da Universidade de Lisboa. Recordarei em anos próximos de 1537, data em que o rei João III transferiu a Universidade para Coimbra, a Oratio de André Resende, em 1534, e a de Jerónimo Cardoso, em 1536. Todavia, não difere muito destas, a Oratio habita a petro menesio comité alcotini coram Emmanuele. S. rege in scholis vlixbonae ou Discurso pronunciado por Pedro Meneses, conde de Alcoutim, na presença do Sacratíssimo Rei Manuel nas Escolas em Lisboa, a 18 de Outubro de 1504.
O conde de Alcoutim, Pedro Meneses, não era professor universitário, mas um jovem aristocrata, discípulo do humanista italiano Cataldo Parísio Sículo. Aliás, estes discursos inaugurais eram frequentemente ditos por pessoas que não ensinavam na Universidade, e no caso de Pedro Meneses, que tinha apenas dezassete anos de idade, a incumbência deve corresponder a um uso frequente nas cidades universitárias italianas, possivelmente trazido por Cataldo, de confiar orações deste género a moços de famílias cultas. O conde de Alcoutim era o filho primogénito de Fernando Meneses, segundo marquês de Vila Real, chamado por Salvador Fernandes pai da língua latina, numa oração de entrada em Vila Real, dita nos começos de 1509.
Mas voltemos a Coimbra, no ano de 1548. Vimos atrás, alguns dos mestres que João Fernandes ou, melhor, Juan Fernandez, natural de Sevilha, elogiou, de par com as ciências de que eram o expoente em Coimbra. Arnaldo Fabrício exalta sobretudo as disciplinas e, em geral, a alta qualidade dos mestres que vêm, segundo ele julgava, expulsar a barbárie da Lusitânia. Esta pretensão tiveram-na, aliás, todos os estrangeiros que ensinaram em Portugal, a começar com Cataldo Sículo, mas este já no final do século XV, isto é, cinquenta anos antes do orador de 21 de Fevereiro de 1548. Arnaldo Fabrício guarda os seus elogios, naturalmente, para o rei João III fundador da nova instituição. A frequência com que todos os oradores de Coimbra incensam o soberano criou a impressão nos modernos leitores das traduções desses discursos, de que as Humanidades foram introduzidas em Portugal só no tempo de João III. Esta impressão é falsa. A própria floração intensa das Humanidades coimbrãs, quase imediatamente a seguir à fundação do Colégio das Artes, e a sua vitalidade, apesar dos graves acontecimentos de dois anos mais tarde, em 1550, quando alguns dos mestres mais prestigiosos foram presos pela Inquisição (maldita), tudo isto prova que a tradição clássica tinha raízes mais antigas em Portugal». In Américo Costa Ramalho, Alguns aspectos da vida universitária em Coimbra nos meados do século XVI (1548-1554), Revista Humanitas, volume XXXVII-XXXVIII, 1985-1986, Universidade de Coimbra.

Cortesia da UCoimbra/JDACT