sábado, 17 de outubro de 2015

A Primeira Mulher de Camilo. Silêncio Injustificado. Alberto Pimentel. «… uma creança de dezeseis anos, mentalizando a plenitude da posse legitima na contemplação da noiva, cujas graças acirrantes, modeladas numa plástica vigorosa, a elle ofuscariam…»

jdact e wikipedia

Ha relâmpagos de memoria que abrem um vinco na fronte do homem. E a velhice extemporânea de alguns o que é se não recordarem-se? In Camilo Castelo Branco, A Enjeitada

Conforme o original

«(…) Ella era, como já disse, uma guapa e têmpora cachopa. Forte, sadia, reforçada, de peitos altos, estatura regular: nas faces morenas, um clarão de ingenuidade alegre, de bondade expansiva. Na véspera e dia de Natal, quando sahiam as rondas, grupos de rapazes e moçoilas que percorrem a povoação em danças e descantes, Joaquina, que tomara os appellidos da mãe, era a flor do rancho, o que despertava um certo despeito nas raparigas nascidas em Friume, porque ella tinha nascido em S. Cosme de Gondomar. A 10 de janeiro, pela romaria de S. Gonçalo, era das mais gentis cachopas que exhibiam as suas vestes de gala: saia de chita, jaqué de merino, ordinariamente escuro, chinellas de verniz, lenço de seda na cabeça.
Pulando nas danças do arraial, quando o lenço lhe descahia ao abandono, parecia ainda mais gentil, graças ao penteado em uso entre as raparigas de Friume: duas tranças singelamente enlaçadas na parte posterior da cabeça. Joaquina Pereira enamorou-se de Camillo ouvindo-o discursar na loja do pai e recitar versos que exaltavam a imaginação. Depois, a liberdade nas rondas, nos entremezes e nas corridas de gallos ageitava occasião propicia ás confidencias, aos segredos, ás juras de amor, que na loja de Sebastião Santos, interposto o balcão, não eram permittidos aos dois namorados.
Camillo, que tinha ido a Friume por acompanhar apenas a tia Rita, achou alli, quando menos o esperava, uma posição social, postoque modesta, conveniente. Luiz Cunha Lemos, que acumulava as funcções de secretario da camara e da administração do concelho de Ribeira de Pena, tinha sido investido também nas de escrivão de fazenda e escrivão e tabellião do julgado. Não parece, este Lemos, um dos felizes burocratas graúdos dos nossos dias, que são verdadeiros cabides de empregos rendosos? Pois bem!, o indispensável Lemos precisava de um escrevente, que certamente não era de mais, e contratou Camillo para esse cargo, mediante casa e mesa, além, talvez, de alguma remuneração em dinheiro. Que magnifico amanuense seria Camillo! Tinha ortographia, prenda não vulgar em Ribeira de Pena e outras partes, incluindo as ilhas adjacentes, mas, principalmente, dispunha de uma bella calligraphia, que a rapidez da escripta não conseguiu estragar completamente mais tarde.
Sebastião Santos não podia encontrar melhor genro, nem mais a seu geito. Dir-se-ia que o tendeiro de Friume, o antigo alfaiate de Gondomar, tivera a intuição do futuro de gloria reservado a Camillo. A certa altura impoz o casamento, tanto mais invejado quanto a imaginação popular, fascinada pelas eminentes qualidades do sobrinho de dona Rita, acalentára a lenda de que elle teria a receber uma grande herança. Foi por uma tarde de agosto, a 18, de 1841 que, na egreja do Salvador de Ribeira de Pena. Camillo Ferreira Botelho Castello Branco desposou a filha de Sebastião Martins Santos. O párocho encommendado, Domingos José Ribeiro, lançou as bênçãos. Como testemunhas assistiram o padre José Maria Sousa, de Pontido de Aguiar, e o genro de dona Rita. Francisco José Ribeiro Moreira, primo, por affinidade. de Camillo. Está a gente a ver toda a movimentação theatral d’essa tarde de agosto em Friume: Camillo, uma creança de dezeseis anos, mentalizando a plenitude da posse legitima na contemplação da noiva, cujas graças acirrantes, modeladas numa plástica vigorosa, a elle offuscariam nessa hora electrizante os liames e encargos do casamento». In Alberto Pimentel, A Primeira Mulher de Camilo, Silêncio Injustificado, PQ 9261C3Z738, Guimarães & Cª - Editores, Lisboa, 1916.

Cortesia de GuimarãesE/JDACT