terça-feira, 27 de outubro de 2015

Carlota Ângela. Camilo Castelo Branco (1825-1890). «Verdade, naturalidade, e fidelidade é a minha divisa, e sê-lo-á enquanto este globo se não reconstruir à feição do disparate com que uns o alindam e outros o desfeiam. Quem desde já sentir azias de boca…»

Cortesia de wikipedia

«Se a natureza formou uma bela criatura, não pode a fortuna precipitá-la num incêndio?» In Shakespeare

«Norberto Meireles e sua mulher dona Rosália Sampaio, ricos proprietários, moradores, em 1806, na rua das Taipas, da cidade do Porto, viam crescer prodigiosamente os seus cabedais, e, com eles, uma filha única, tão encantadora para os pais como a riqueza com que a iam enfeitando para seduzir o mais medrado capitalista da terra. Tolerem-me a singeleza com que se começa a narrativa. Eu tinha à minha disposição quatro exórdios bonitos, que escrevi em quatro tiras, e rejeitei com desdém. Era assim o primeiro: diz-me tu, amor, que magos filtros insinuaste no coração da virgem de olhos negros, que leda e melancólica, lagrimosa e risonha, te está enamorando na lua, de onde lhe sorris em noites calmas de estio, na floresta, onde lhe cicias palavras nunca ouvidas, na fonte, onde lhe murmuras a tua linguagem do céu? Que ambrosia inebriante deste à doidinha que, tão requestada e alheada de brinquedos pueris, se vai, só e destemida, a buscar-te, por entre mirtos e rosais, perseguindo-te como lasciva borboleta de flor em flor, sobre alfombras de verdura, por onde volitam lúcidos falenos?
Segundo exórdio: à viração da tarde tremulava ligeiramente a folhagem do renque de alamos que cintavam uma pitoresca vivenda do Candal. Um repuxo de cristalina linfa trepidava na cascata com soidoso rumor, donosa música, ao som da qual se espertam amores em peito virgem, e adormecem mágoas em coração atribulado. Morbidamente recostada sobre um banco de cortiça, por onde trepava um jasmineiro em flor, via-se, como engolfada em alegrias íntimas das que o rosto esconde ao invejar de estranhos, uma graciosíssima donzela... etc.
Terceiro: onde vai este gentil mancebo, tão à pressa e ofegante pela calada da noite, subindo a colina do Candal, em cujo topo alveja uma casa, onde ele parece mandar adiante o coração em cada suspiro que o cansaço lhe tira do peito arquejante? Que visão alvíssima, que fada ou silfo é esse que desliza, rápido e volátil, por entre os alamos, e vem ao peitoril do muro, como a ansiada Hero, restaurar o vigor do extenuado Leandro?... etc.
Quarto, e último exórdio: vou contar-vos uma história que verifiquei nas fiéis narrações de mais de vinte pessoas vivas. Ides ver até que ponto os pais podem infelicitar os filhos; até que ponto a missão augusta do segundo criador pode ser fementida e insidiosa; até que ponto o amor paternal é amor, e de onde começa a ser desumanidade. Se alguma confiança devo ter na justiça congenial do coração humano, espero carear graça e indulgência para uma filha que se rebela primeiro contra um pai, depois contra o falso deus que lhe impuseram como verdugo de mais alta e temerosa categoria, árbitro e claviculário das sempiternas moradas do inferno...etc. Aí está o que eu tinha escrito. Tudo rejeitei, contra a opinião de um congresso de homens de delicado gosto, que votaram por qualquer dos quatro prelúdios, chasqueando-me a simpleza com que escrevi o quinto, acanhado e peco como historieta sem nervo, nem imaginação. E, portanto, desde já me desquito com os leitores se no decurso deste romance me apodarem de insulso e desimaginoso.

Verdade, naturalidade, e fidelidade é a minha divisa, e sê-lo-á enquanto este globo se não reconstruir à feição do disparate com que uns o alindam e outros o desfeiam. Quem desde já sentir azias de boca, deixe isto, e desenfastie-se com as conservas irritantes da França, e até das nacionais, que também as temos, curtidas em vasilhas, francesas. Embora travem à ervilhaca, é o que temos, e o que nos dão os Watteis dos fricassés literários, em menoscabo do clássico cozinhado de Domingos Rodrigues. Atemos o fio, e a graça de Deus nos assista, para que a benevolência do leitor se compraza com o alinho desafectado e lhano deste conto. A filha única de Norberto Meireles e Rosália Sampaio chamava-se Carlota Ângela, e tinha dezessete anos, em 1806. Não era formosa; mas esquisitamente engraçada sim.
Norberto, filho de lavradores transmontanos, era campesino, rústico, e desajeitado; Rosália, com quanto procedente de progênie já cidadã desde seu avô, havia muito ainda que desbastar, e quatro gerações não tinham adelgaçado nada a raça originaria de Covas de Barroso. Ora, a vergôntea de troncos ou cepos tais não podia sair de compleição tão fina e delicada, como se usa liberalmente com as heroínas dos romances. As feições de Carlota eram secas e trigueiras; mas a magreza não era de debilidade ou doença. O ligeiro toque de escarlate nas faces era a transparência de sangue rico de toda a seiva dos dezessete anos. Tinha uma bonita fronte, e abundantes cabelos pretos, que ela enfeitava sem esmero, mas com desalinhada graça, conservando-os, até essa idade, em três tranças, que um laço de cetim encarnado prendia na cintura em duas roscas. À custa de importantes admoestações da mãe, Carlota reformou o penteado, em conformidade com a moda, que era enastrar trancinhas de cabelos em dois grandes corações que ladeavam a cabeça, desde o vértice até às orelhas, com matiz de laçinhos de várias cores: bonita cousa, antes da restauração das troixas contemporâneas, restauração, digo, porque as malas, no cocuruto da cabeça, começavam a decair do gosto em 1806.
O que fazia engraçadíssima Carlota eram as espessas sobrancelhas, que formavam apenas um crescente das duas arcadas ciliares: tão imperceptível era a cisura que as estremava na base do nariz. Bem sabem que olhos costumam ser os que reinam sob tão magnífico dossel: grandes, e negros, entre longas pestanas que, ao mais ligeiro languir das pálpebras, se ajustavam num amortecer de tanta volúpia, que mais não podia ser, sem feitiçaria! Ainda não sei descrever narizes, e por narizes comecei a pintar. O de Carlota era irregular, talvez, ao contrário dos narizes de passaporte: era um nariz adunco, longo de mais para aquele rosto; mas esta incongruência, impressionando aos que a viam pela primeira vez, à segunda, não havia que desdenhar-lhe. Singular e desusada era a boca. Cada comissura ou canto dos lábios terminava em dois vincos, um subindo, outro descendo, mas tão pronunciados, que pareciam um permanente riso sardónico, um não sei quê que fazia desconfiar as pessoas menos habituadas à sua convivência. Carlota era alta e gentil. Não se afectava para ser garbosa, que lhe sobejava graça e donaire nos naturais meneios. O braço era incorrecto, fornido de mais em carnes, e de pele trigueira; a mão longa e magra; e o pé proporcional à corpulenta haste». In Camilo Castelo Branco (1825-1890), Carlota Ângela, 1874, Projecto Livro Livre, Iba Mendes, livro 585, Poeteiro Editor, Wikipedia, 2014.

Cortesia de PoeteiroE/JDACT