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de Janeiro de 1902
«(…)
Não entendo porque chora. Sigo pelo corredor com muita dignidade e propósito.
Estou vaidosa do meu vestido até ao chão, tufado de curvas que o meu corpo não
enche. As pontas do laço cor de malva, uma cor de senhora, com que a Paca
atou ao alto os canudos da frente, caem-me pelas costas até à cintura. Os
sapatos de polimento apertam-me, mas os tapetes fofíssimos adoçam qualquer
marcha e o objectivo próximo é atravessar a antecâmara ao fundo do corredor e
bater ao de leve na porta fronteira, empurrando de seguida a grande maçaneta
dourada. Raramente me chamam ao salão. Para mim é o lugar onde se reúnem os
velhos, durante anos ouvi nas noites de quinta-feira os acordes do piano,
senhoras com vozes estridentes a cantar coisas líricas em francês ou italiano, raramente
em alemão, raramente afinadas. Percebo que estou a crescer porque me chamaram
na quinta-feira passada para tocar (muito mal) o Für Elise que ando a estudar com a minha mestra dona Virgínia, que
me diz sempre, não quero mãos, não quero pedras, quero asas. Asas. Penso na minha mãe Maria
Luísa que não conheci, morreu tuberculosa quando eu tinha três meses, pouco
depois morreu o meu pai com a mesma doença, calculo a revolução que não terá sido
nesta casa, a irmã Joséphine da minha avó Eugénie já falecida era a minha única
parente, ela e o marido Alberto fecharam a casa deles em Lisboa que era alugada
e vieram viver para Sintra para cuidar de mim, davam-me leite de vaca e eu
vomitava, com os antecedentes clínicos dos meus pais todos temiam o pior, até
que a cozinheira Aldora, disse que sabia de uma ama-de-leite asseada e saudável
e chamaram a Paca a quem tinha morrido o bebé e vinha toda vestida de
preto porque foi apresentada como viúva, a Aldora estava fartinha de saber que
ela era mãe-solteira aos dezoito anos, mas já não podia ouvir-me berrar e
pareceu-lhe aquela mentirinha insignificante, a tia Joséphine ainda achou a Paca
muito morena para o seu gosto, mas, que remédio, antes viver num palacete em
Sintra com uma ama morena do que num andar alugado com uma criada loura para
todo o serviço.
Foi
assim que a Paca entrou na minha vida. Diz-se galega mas é uma autêntica
cigana. Canta cantigas numa língua incompreensível sem ésses, acompanhando-se com palmas no sentido literal do termo, isto
é, bate com palma contra palma, os dedos, bem abertos, não entram na feitura do
som. A Paca é adivinha, bruxa, se quiserem e eu adoro-a porque é a minha
verdadeira mãe. Posso entrar? Os meus tios estão sentados em atitude solene e
está de pé o médico que os assiste, o doutor qualquer coisa Seabra, que não é
tão velho como eles mas pouco lhe deve faltar. Cumprimento com uma reverência
graciosa, a tia Joséphine ainda disse, faites
la révérence, mas eu já tinha feito e nisto, para minha surpresa, mandam-me
sentar. Pouso no cadeirão segundo os ensinamentos da tia Joséphine: o rabo bem
assente, as costas direitas sem me encostar, os joelhos em ângulo recto, os pés
bem juntinhos, as mãos no regaço, uma sobre a outra. Sinto-me linda e grave,
não sei o que me querem, mas tenho a consciência de estar a fazer boa figura,
rescendo a verbena e tenho os olhos baixos. Espero levantá-los modesta e
oportunamente e deslumbrar a visita com o seu magnífico brilho azul-violeta, os
meus olhos são por enquanto o meu único atout.
Que desperdício a visita ser aquele velho e não o príncipe encantado dos meus
sonhos. De súbito tomo consciência do discurso do meu tio-avô Alberto que até
ali não escutei, ele diz..., o doutor Emídio Seabra, que como a menina sabe é o
nosso médico muito estimado.
Aceno
que sim com a cabeça embora não tenha ouvido o princípio da frase. E depois,
penso cá para mim, o que é que eu tenho a ver com o médico se não estou doente.
A nossa maior preocupação é morrer e deixá-la sem amparo. A quem? A mim? Penso
isto mas guardo-me de interromper o meu tio, nunca na vida, e ele, … eu e a sua
tia Joséphine já passámos dos setenta, la
soixantaine, corrige a tia, coquette.
E então compreendo. Vão arranjar-me um tutor, é o costume e negociar com este
senhor de barba preta a administração da minha fortuna, que, segundo a Paca,
é considerável, sou mesmo eu que sustento o palacete, os tios, os criados, os
cavalos e os serões das quintas-feiras». In Rosa Lobato Faria, Os Três Casamentos de
Camila S., Edições Asa, Porto, 3ª Edição, 1997/1999, ISBN 972-41-1904-1.
Cortesia
ASA/JDACT