quarta-feira, 14 de outubro de 2015

O Manuscrito Alfield. Manuscrito de 1516. Alan Dorsey Stevenson. «Indo para lá, ouviu cantar uma voz tão doce e melodiosa que outra coisa não supôs senão que era a voz de um anjo, e esgueirou-se até à fonte o mais oculto que pôde por trás das folhagens»

Cortesia de wikipedia

Texto Crítico do Manuscrito. Livro Dois
«(…) Agora vou falar de certa mulher que chegou perto de por amor dela Amidieu romper o voto de castidade e ser posto a ponto de perder-se. Como está contido no começo deste livro, havia no país de Soubezmayne, dentro da extensão de seus limites, um santo eremita que tinha uma capela dedicada a São João na sua ermida em Byes. Era ele, esse eremita, o mais santo dos homens: era um velho de dorso arqueado e cabelos brancos, e nunca se barbeava, de modo que os fios do cabelo e da barba cobriam-lhe quase todo o corpo. Nunca ninguém o ouviu dizer uma só palavra excepto em oração: por nove anos guardara uma pedra na boca até aprender a ficar calado e em silêncio, a qual pedra pode ser vista e venerada hoje entre as relíquias da capela; e, por conta da santidade desse homem, muita gente de muitas províncias longe e perto vinha até Byes em romaria. De Malemort à vila de Byes não são mais que oito ou nove léguas, e a estrada é boa e plana, e assim os nobres romeiros que iam a Byes ver e visitar o eremita tinham por costume já há longo tempo demorar-se em Malemort alguns dias. No Verão daquele ano a senhora de Danvil passou por Malemort a caminho da ermida, e com ela outras quatro mulheres também casadas, e Roger de Giac acolheu-a muito bem e acomodou-a com todo o conforto, a ela e a às suas acompanhantes; ali ficaram uma semana inteira, pois aonde iam levavam tanta alegria que sir Roger não queria deixar que seguissem caminho. Mas é bem verdade que ninguém deve fazer romaria por diversão nem para atender a delírios, prazeres, nem deleites carnais, mas, se querem fazê-la, que a façam com o coração e a mente inteiramente voltados para o propósito maior de servir a Deus. Pois os que vão em romaria a algum lugar por amor de torpes prazeres mais do que por devoção ao lugar aonde vão e fingem que o seu propósito é o serviço de Deus, essa romaria não tem valor nem mérito algum, pois o que fazem é troçar e escarnecer de Deus e de Nossa Senhora e profanar o santuário que visitam.
Ora, a senhora de Anvil não era fiel em seu casamento e, para ter melhor ocasião de encontrar o amante, deu a entender ao marido que queria pagar uma promessa que fizera de visitar o ermitão de São João de Byes; e o marido, sem ver nisso maldade alguma, e não querendo contrariá-la, consentiu que fosse a Byes ou aonde quisesse. Assim, ela mais o amante puseram dia certo para se encontrarem em Byes, onde pudessem entregar-se à sua torpe linguagem e comunicação e a seus afazeres juntos em vez de dizer preces a Deus nem fazer penitência alguma durante a romaria. Bem podemos supor que fagueiro séquito de demónios acompanhava essa senhora nessa romaria, pois era muito dada ao pecado, não sozinha, ela como com ela, todas as suas companheiras também. E se algum de vós me perguntar se eram elas belas, devo dizer, para não mentir, que eram sim, e que dentre todas a mais bela era Marguerite Reynespagne, que tinha um marido naquela ocasião que se chamava naquela ocasião Nicholas Bursegaunt. Bem, no dia em que essas mulheres chegaram com muita festa a Malemort, Roger Amidieu esteve fora o dia todo na floresta com o seu irmão Thibert e assim não soube que tinham chegado. Retornando a casa, eles dois desceram e apearam dos cavalos e cada qual foi para seu lado, um para cá, outro para lá; Thibert foi levar os cavalos ao estábulo e Roger, que estava com muita sede, foi beber de uma fonte que havia ali intramuros.
Indo para lá, ouviu cantar uma voz tão doce e melodiosa que outra coisa não supôs senão que era a voz de um anjo, e esgueirou-se até à fonte o mais oculto que pôde por trás das folhagens. Assim que vislumbrou a fonte viu ali quatro mulheres, todas elas desconhecidas, e no meio delas a mais bela mulher que jamais vira em dias de sua vida, que lhe pareceu mais viçosa que rosa de verão e mais clara que luz do dia: era ela que cantava tão melodiosamente. Ali ficou bem quieto, tanto pela beleza da mulher como para ouvir-lhe a doce voz canora, e escondeu-se o melhor que pôde entre os arbustos a fim de não ser percebido daquelas mulheres, e esqueceu até mesmo a grande sede que sentia. Ela continuou a cantar tão melodiosamente que ele ali enlevado não lembrava do mundo coisa alguma, mas apenas de estar ouvindo e vendo aquela mulher, e nem sabia se era dia ou se era noite, nem se estava desperto ou sonhando. Aí vieram-lhe correndo dois de seus cães com muita festa, e ele sobressaltou-se como quem desperta bruscamente, e então sentiu a sede renovar-se e, sem mais demora, saiu dentre os arbustos e chegou-se à fonte e tomou a vasilha que pendia ali e bebeu um pouco d’água».  In Alan Dorsey Stevenson, O Manuscrito Alfield, A Folha de Hera, Jazzseen, Julho de 2012, Vitória Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, Biblioteca Pública do Espírito Santo, 2011.

Cortesia de Jazzseen/JDACT