quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Os Sensos Incomuns. Maria Isabel Barreno. «… era difícil de saber qual a causa, qual o efeito: estendera-se o queixo pela agressividade interior, viera a agressividade daquele queixo protuberante, pronto a suscitar críticas e sarcasmos?»

Cortesia wikipedia e jdact

As amigas
«(…) Eram três mulheres feias, amigas relativamente íntimas. Uma, via o mundo com os olhos pequenos. Conjugavam-se nesse olhar dois factores: primeiro, ela tinha os olhos pequenos; segundo, tinha uma visão estreita do mundo. Seria difícil dizer o quê a causa, o quê o efeito: se os olhos se haviam tornado pequenos pela visão estreita, se a visão se adaptara à dimensão abarcável pelos olhos. Mas, para que o seu tipo de olhar sobre o mundo fique completamente definido, deve ser acrescentado que ela piscava os olhos incessantemente, como se se sentisse aturdida, confundida e se defendesse de um mundo que não concordava consigo; como se lhe fosse necessário limpar e voltar a limpar o olhar, obcecadamente procurando aprofundar, perfurar, a pequena área da realidade que os seus olhos abrangiam; como, enfim, se o seu ego tivesse sempre que sair triunfante de qualquer enigma, de qualquer dúvida que o mundo exterior lhe trazia.
Outra olhava o horizonte intensamente, de sobrolho franzido, enquanto roía as unhas. Não era esta uma postura ocasional, uma atitude numa tarde depressiva: era a sua natural postura. Levantava-se, arranjava-se, e logo saía de casa roendo as unhas e olhando o horizonte. Assim guiava, assim se sentava à secretária no seu emprego, assim conversava com os amigos. Quando via televisão tudo se passava exactamente na mesma, a única diferença sendo a substituição de um horizonte mais vasto pela televisão. As pessoas diziam-lhe que ela andava tensa, que era nervosa, que deveria mudar de vida ou tratar-se. Ela respondia que sempre fora assim, que não sentia nenhum nervoso especial, apenas o mundo lhe parecia fascinante e assustador, digno daquele olhar intenso, sempre no horizonte, pronto para o inevitável devir de todas as coisas e circunstâncias. De facto, o seu olhar e a sua atenção não eram muito diferentes dos da primeira mulher, e elas alicerçavam a sua amizade não muito íntima nessa mesma atenção persecutória ao mundo: só que a primeira parecia usar os olhos como brocas, tentando perfurar a realidade para nesses pequenos furos encaixar a sua estreita visão, e a segunda resolvia o conflito duma forma autofágica, pronta a roer-se pela suspeita de que destoava na paisagem que vislumbrava, começando nas unhas as primeiras dentadas. Por isso a sua intimidade era relativa: o tempo duma confidência e logo se afastavam em direcções opostas, em emoções contrárias, uma piscando sobre o mundo o seu ego pimpão, a outra consumindo-se no fogo interior da timidez; uma podendo ser chamada de Pestanejante, a outra de Autofágica.
De longe, portanto, se estabelecia a sua amizade, se compreendiam sem cumplicidade e se acenavam, como dois generais em campos opostos mirando pelo binóculo, com respeito, a estratégia do seu colega de armas. A terceira tinha as sobrancelhas estupidamente arqueadas, depiladas para fornecer esse efeito arqueado e erguidas em perpétuo espanto. Viera duma classe social mais desfavorecida e o seu gosto deixava bastante a desejar. A parte de cima do seu rosto, de expressão totalmente arregalada, exprimia essa profunda surpresa, perante a vida, perante o mundo, perante tudo, perante si própria. Abaixo, todo o resto da cara exprimia agressividade: nas linhas duras da boca muito cerrada, nos lábios quase inexistentes e também arqueados, com os cantos descaídos, no queixo, tenso, projectado para a frente. Ela era prognata: assim dissera o dentista a sua mãe, quando os dentes definitivos tinham vindo substituir os dentes de leite. A mãe ficara alarmada e perguntara se era grave, e o dentista ganhara o seu dia explicando com uma suavidade toda pedagógica que prognatismo significava apenas ter-se os dentes de baixo mais para a frente do que os de cima; era um dentista que gostava de espalhar o saber à sua volta, especialmente quando em direcção do povo, e aqui termina o seu papel nesta história.
Também neste caso era difícil de saber qual a causa, qual o efeito: estendera-se o queixo pela agressividade interior, viera a agressividade daquele queixo protuberante, pronto a suscitar críticas e sarcasmos? Mas, nesta mulher, a dúvida quanto às causas toma-se mais séria, toma-se uma dúvida visceral: qual a parte dominante, qual a guia do seu caminho pelo mundo, o arregalado espanto dos olhos e sobrancelhas, presença ainda explícita duma infância humilhada, ou a dureza agressiva da boca e do queixo, esgrima defensiva que ela aprendera no esforço do curso superior sacrificadamente pago pela família? Entre uma coisa e outra, que mediações possíveis, que transições ou conflitos? De visível e de óbvio só o riso. Esta mulher de contradições faciais ria-se muito, tinha gargalhadas súbitas e muito sonoras, como quase todas as pessoas que têm poucas explicações para o mundo e estão entaladas entre contradições que não lhes afloram ao consciente, nem vêem no espelho apesar de óbvias». In Maria Isabel Barreno, Os Sensos Incomuns, 1993, colecção Campo da Palavra, Grande Prémio do Conto, Editorial Caminho, 2008, ISBN 978-972-210-886-7.

Cortesia ECaminho/JDACT