sábado, 10 de outubro de 2015

As Luzes de Leonor. Maria Teresa Horta. «Diga-se claramente que a escrita adiciona uma dimensão sensual a tudo o que representa e empresta às vozes dos seus narradores um tom de intimidade e de introspecção que acentua a sensação de proximidade com o narrado»

Cortesia de FJPitschmann, Leonor, marquesa de Alorna, 1780
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«Ocupo com estas palavras um espaço que não é meu: Maria Teresa Horta honrou-me com o pedido de algumas linhas de introdução ao seu romance, inspirado na 4.ª Marquesa de Alorna, dona Leonor Almeida Portugal. O convite é o resultado do interesse que ambas partilhamos por esta mulher extraordinária do século das Luzes, inteligente, culta, espirituosa, bonita, sensível, voluntariosa, sofredora. Ao contrário do que acontece com a maioria das mulheres portuguesas que viveram no passado, conhecem-se milhares de testemunhos acerca da vida e da actuação desta mulher: há cartas, depoimentos, opiniões de contemporâneos, certidões e documentos notariais, para além de uma vasta obra poética, filosófica e erudita que legou à posteridade. Para quem se interessa pela história das mulheres em Portugal, para alguém que, como Maria Teresa Horta, está interessado em interrogar o lugar social, político, intelectual e (porque não dizê-lo) sexualmente marcado do feminino na cultura portuguesa, a escolha de dona Leonor Almeida como personagem central de um romance é iluminadora. Mas é também um desafio. A decisão de escrever sobre alguém que viveu no século XVIII obriga à pesquisa histórica, trabalho que Maria Teresa iniciou muito antes de nos termos conhecido, com uma persistência e uma minúcia que raramente se encontram em alguém que, de facto, não foi treinado para as agruras da investigação de arquivo.
Obriga, sobretudo, a constranger a elaboração poética, a limitar as possibilidades de criação ficcional, a restringir o que se inventa ao temporalmente verosímil. Assim, é num lugar condicionado por factos, por datas, por documentos, que a escrita das Luzes de Leonor acontece, nesse território estranhamente mágico em que a ficção e a história mutuamente se seduzem sem nunca se renderem uma à outra. É nessa zona fluida, de tensão permanente entre o factual e o imaginado, que a narrativa de Maria Teresa Horta vai abrindo lugares de passagem entre o presente e o passado, e entre vários momentos do passado que a dinâmica do devir histórico associou.
Sublinhe-se, no entanto, que tem nas mãos um romance, não um livro de História. Os dados históricos surgem trabalhados pela escrita e são-nos contados por um narrador que não só tudo sabe, como pode permitir-se projectar os seus afectos no que conta e, até, entrelaçar vários planos temporais, como acontece com a narrativa dos meses da vida da avó de dona Leonor, desenrolados em paralelo com o relato da vida da neta, ou com as reflexões sobre ambas, feitas a partir do momento presente, que também se cruzam nesse enlace. A plasticidade do romance permite isso, como permite que o relato se distribua por várias vozes, ou que ao lado de personagens reais apareçam personagens imaginárias, ou mesmo que se infiltrem na trama romanesca personagens importadas de outras narrativas, à laia de homenagem aos seus criadores, como acontece com Lilias Fraser.
Se quiséssemos traduzir em palavras simples o modo como a escrita de Maria Teresa Horta trabalha os dados da História, poderíamos dizer que os revisita para lhes acrescentar aquilo que o olhar do historiador geralmente deixa de fora: a dimensão emocional, a interioridade, uma profusão de pequenos pormenores significativos que permitem revelar o mais íntimo de uma personalidade dada, de uma atmosfera particular, de todos os cambiantes dos afectos. Muitas vezes, de modo inesperado. Porque se procura traduzir um olhar feminino sobre as coisas que não é nem passivo nem assexuado.
Diga-se claramente que a escrita de Maria Teresa Horta adiciona uma dimensão sensual (no sentido mais abrangente do termo) a tudo o que representa e empresta às vozes dos seus narradores um tom de intimidade e de introspecção que acentua a sensação de proximidade com o narrado. Muito contribui para esse efeito de proximidade a evocação de pormenores de época que apelam aos sentidos e o transportam para ambientes povoados por uma infinidade de texturas, cheiros, cores e sabores evocados por meio da descrição pormenorizada de peças de vestuário, de roupas de cama, de tecidos de decoração, de comidas, de doces, de perfumes inebriantes e de cheiros desagradáveis, de interiores recheados de móveis, objectos de decoração, louças e vidros, bem como de cenas ao ar livre povoadas de vegetação, de árvores e de flores. Gostaria de insistir nesta atenção ao detalhe que enforma a prosa de Maria Teresa Horta, no cuidado com a escolha das palavras, na atenção às suas sonoridades, no jogo com os seus possíveis sentidos. Entre História e ficção, prosa e poesia, racionalidade e exploração dos afectos, romance de aventuras e viagem sentimental, o romance é uma experiência de leitura única que não deixará indiferente nenhum leitor». In Vanda Anastácio

In Maria Teresa Horta, As Luzes de Leonor, Publicações dom Quixote, 2011, Prémio D. Dinis I, ISBN 978-972-204-733-3.

Cortesia de PdQuixote/JDACT