Os
gaiteiros
«(…) Estas
sátiras não deixaram de ser vistas com agrado num mundo goliardesco onde
a virtude convivia descontraidamente com o pecado. Ao lado da javali gárgula de
Plasencia encontra-se um alegre campónio muito entusiasmado a tocar a
gaita-de-foles. Tocar gaita é
a expressão que em português melhor explicita o sentido de provocação
sexual a ela associado. Nas representações artísticas predominam os
porcos e os macacos que se dedicam a este exercício musical. O porco ou
javardo, significa literalmente essa gula ou luxúria depravada. Já Santo
Isidoro de Sevilha o referia nas Etimologias: os porcos são imundos porque
se revolvem e sujam na terra à procura de alimentos. Na obra Hortus
Sanitatis (1485), inspirada em Aristóteles, Jehann von Cube desenvolve a
ideia da associação do porco à luxúria, referindo a precocidade sexual do
animal que aos oito meses já está apto a copular. Os exemplários acrescentam os
mesmos atributos aos macacos e associam-nos ao gosto pela bebida e a todo o
tipo de gula e prazeres carnais. Representam-se com este sentido em
cortejos festivos, tocando instrumentos musicais, a par de sátiros, centauros e
outras figuras humanas bestializadas ou em duetos e provocações recíprocas com
homens selvagens. Podem observar-se no cadeiral de Santa Cruz de Coimbra,
em idênticas iconografias por vezes mais explicitamente licenciosas como as de
Oviedo, mas também no retábulo da Sé Velha de Coimbra numa disputa com
selvagem, ou no portal da Sé de Lamego,em paralelo com representações mais
realistas de felatio. O termo gaiteirice
prende-se com estes costumes e vemo-lo aplicado à luxúria desbocada dos loucos,
bem como a de outras práticas licenciosas a que muitos religiosos também se
entregavam. A gaita-de-foles parece ter esse específico significado sexual.
Arcipreste de Talavera, na recolha de refrães que incluiu no El Corbacho
(1438),
a propósito de frades e seculares dados a assediar a mulher do próximo, utiliza
a frase: dignos por sus fechos de tañer la cornamusa.
Os próprios
tocadores de gaita-de-foles estão associados às festas, ao riso saudável e
desbragado das patuscadas populares acompanhadas de bebida e muita outra diversão.
Gil
Vicente e Camões referem-no a propósito dos tempos soturnos trazidos pela
Inquisição (maldita). A apagada e vil tristeza
que já aparecera no Triunfo do Inverno vicentino: Em Portugal vi eu já/ Em cada
casa pandeiro/ E gaita em cada palheiro;/ E de vinte anos a cá/ Não há hi gaita
nem gaiteiro,/ A cada porta hum terreiro,/ Cada aldeia dez folias, /Cada casa
atabaqueiro; /E agora Jeremias/ hé nosso tamborileiro./ Só em Barcarena
havia/tambor em cada moinho,/ E no mais triste ratinho/ S’enxergava uma alegria
(Gil
Vicente, Triunfo do Inverno). Gaiteirices significam
também amores fora de época. Gil Vicente não os poupou nas suas sátiras: Moça: Já perto sois de morrer.
Donde nasce esta sandice que, quanto mais na velhice, amais os velhos viver? E
mais querida, quando estais mais de partida, é a vida que deixais? Velho: Tanto sois mais
homicida, que, quando amo mais a vida, ma tirais. Porque meu tempo d’agora vai
vinte anos dos passados; pois os moços namorados a mocidade os escora. Mas um
velho, em idade de conselho, de menina namorado... Oh minha alma e meu espelho!
Moça: Oh miolo de
coelho mal assado! (...) ...e nem a velha mulher ciumenta escapa á troça. Velho: Estas velhas são
pecados, Santa Maria vai com a praga! Quanto mais homem as afaga, tanto mais
são endiabradas! (Gil Vicente, O Velho da Horta).
A gaita de
foles, símbolo da escatologia sexual da sociedade é também o instrumento do
louco, das festas carnavalescas, dos bufões chocarreiros de cuja boca saem os disparates
certeiros na crítica da loucura da sociedade pela veia de Sebastian Brant e
mais tarde de Erasmo. Algumas representações do toque da gaita-de-foles
aproximam-se de figuras metamorfoseadas (especialmente monges) cujos narizes se
prolongam nos tubos da gaita ou nas flautas imprimindo-lhes um nítido carácter
fálico. Noutros casos a associação sexual é mais explícita, mostrando
claramente cenas de sexo contra natura ao lado dos porcos, macacos e coelhos
gaiteiros.
A luta
dos sexos
As
referências a castigos domésticos, e guerras de sexos, parodiados nas festas
carnavalescas também são comuns na marginalia dos cadeirais e em
gravuras da época. Uma das variantes consistia na chamada briga pelas calças, em que a mulher as disputa ao marido, assim
como noutras afirmações do sexo fraco capaz punir a vanglória masculina. Nas misericórdias
dos cadeirais era muito comum o exemplo da dona-de-casa que castiga o esposo
por chegar tarde e a más horas para a ceia. A iconografia completa faz figurar
a mulher a castigar o marido com um pau enquanto o animal doméstico aproveita a
briga e come o repasto do pote». In Maria Manuela Braga, A Marginalia Satírica nos cadeirais do
Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Sé do Funchal, Revista
Medievalista, director Luís Krus, Ano 1, Nº 1, Instituto de Estudos Medievais,
FCSH-UNL, FCT, 2005, ISSN 1646-740X.
Cortesia
de RMedievalista/JDACT