sábado, 17 de outubro de 2015

A Primeira Mulher de Camilo. Silêncio Injustificado. Alberto Pimentel. «… logo que elle se formasse em medicina, Joaquina Pereira sahiria de casa do pai para a companhia do marido: e que a filhinha seria entretanto educada num Recolhimento portuense»

jdact e wikipedia

Ha relâmpagos de memoria que abrem um vinco na fronte do homem. E a velhice extemporânea de alguns o que é se não recordarem-se? In Camilo Castelo Branco, A Enjeitada

Conforme o original

«(…) Por um cabello que não fui então martyr do génio! A victima crucificada na porta da egreja não era das que dizem: Senhor, perdoai ao poeta, que não sabe as asneiras que diz! Apenas lhe constou que era eu o instrumento da vingança de seu irmão, preferiu quebrar o instrumento, e deixar não só o fidalgo, que também o boticário em paz. Poeta era eu só n’aquelle quadrado de dez léguas: avisadamente conjecturou o homem que, esganando a musa que o verberara, abafaria aquelle respiraculo da detracçâo inimiga. O padre mestre avisou-me horas antes da espera e da sepultura. Fugi com o magnum léxicon debaixo do braço, e com os ossos direitos que aquella terra ingrata me queria comer.  Abandonando Ribeira de Pena precipitadamente, como quem foge a um perigo certo. Camillo deixou alli memoria de duas creancices: o casamento e a satyra. Que admira, se elle era uma creança de dezeseis annos?
Sob a protecção do sogro, veio para Lisboa, onde tornaria a ver Amélia ou Celestina, a qual se mostraria indifferente á recordação do galanteio infantil que ambos haviam entretido. Lisboa seria a terra escolhida intencionalmente, talvez por conselho de Sebastião Santos, para que fosse maior a distancia interposta ao auctor da satyra e ao seu feroz inimigo de Ribeira de Pena. Mas Camillo não estava habituado á vida da capital, que lhe fazia saudades da vida dos campos e dos passarinhos dos soutos e olivaes. Quando julgou mais acalmada a tempestade que a satyra desencadeara, foi para o Porto a fim de estudar preparatórios, porque o sogro não tinha desistido ainda de formal-o em medicina. De repente, num impeto de mocidade irrequieta, a que a saudade da infância não seria de todo estranha, Camillo emancipou-se da tutella de Sebastião Santos e acoitou-se em Villa Real em casa da tia dona Rita. Desde essa hora, o sogro julgou prejudicados todos os seus projectos, e vociferava nos soalheiros de Friume, especialmente na loja, contra o genro, que elle próprio havia conduzido imprudentemente. A victima da cólera de Sebastião era a filha, que nenhuma culpa tinha nas occorrencias que lhe arrancaram dos braços o marido.
Mas o pai enfurecia-se quando via no collo de Joaquina uma creança recemnascida: revelava assomos de medonha cólera. A pobre rapariga, desejando juntar-se ao marido, contratou duas mulheres de Friume, para que fossem a Villa Real levar a Camillo uma carta em que se dizia enferma. As duas mensageiras enganaram-na, porque se occultaram durante alguns dias, findos os quaes appareceram simulando a resposta de que Camillo não estava em Villa Real, mas que dona Rita Castello Branco lhes assegurara que, logo que elle regressasse alli, lhe entregaria a carta de Joaquina Pereira. A verdade é que Camillo estava em Villa Real, e não recebera a mensagem. Apezar de haver encontrado um novo idyllio, os factos, que depois se deram, fazem crer que partiria para Friume se a carta de Joaquina Pereira lhe houvesse chegado ás mãos. Como elle se demorasse em voltar, a filha de Sebastião Santos alliciou um mensageiro de maior confiança, Bernardo Alves, para ir a Villa Real com nova carta. Adivinha-se facilmente o que essa carta diria. Fallar-lhe-ia da filhinha, das suas graças infantis, das cóleras com que Sebastião Santos a atormentava, e da supposta doença, piedosa mentira destinada a commovêl-o.
Camillo contou a Bernardo Alves os motivos que tinha para não ir a Friume: receava a brutalidade do sogro e talvez a vingança da victima da satyra; mas romperia por todas essas considerações, se tivesse meios para sustentar a mulher e a filha. Bernardo Alves contrapoz, certamente, que tudo se concertaria do melhor modo possível, e Camillo não duvidou acompanhal-o a Friume. Avistou-se com a mulher e, reconhecendo que ella não estava doente, teve uma phrase carinhosa, que é confessada por uma testemunha presencial: Então eu por aqui tão afflicto, e tu de perfeita saúde? Beijou a filhinha, e parece que, graças á intervenção de Bernardo Alves, se reconciliou algum tanto com o sogro, que, sempre desconfiado, o vigiava como um Argus, procurando evitar a aproximação intima dos dois casados. Combinou-se que Camillo voltaria para o Porto a continuar os estudos: que, logo que elle se formasse em medicina, Joaquina Pereira sahiria de casa do pai para a companhia do marido: e que a filhinha seria entretanto educada num Recolhimento portuense». In Alberto Pimentel, A Primeira Mulher de Camilo, Silêncio Injustificado, PQ 9261C3Z738, Guimarães & Cª - Editores, Lisboa, 1916.

Cortesia de GuimarãesE/JDACT