terça-feira, 13 de outubro de 2015

Cinco turcos em Paris. Nicolas Bourbaki. Armando Araújo. «O estilo a adoptar seria rigoroso, impessoal e assumidamente dogmático. Nada de vaidades pessoais. Definição, teorema, demonstração e basta. Ignoravam-se motivações, exemplos, referências históricas e aplicações»

Cortesia de wikipedia

«Na primeira metade do século XX, alguns matemáticos, com especial realce para o grupo Bourbaki , apresentaram diversas formulações do conceito de função, muito próximas da maneira como ele é estudado actualmente no secundário e na universidade». In Armando Araújo 

Nota: A quase totalidade deste texto foi extraído, com a devida vénia, da revista Ingenium, II Série, N.º 35, Março de 1999. Algumas frases estão ligeiramente alteradas, mantendo o mesmo sentido, outras são nossas, incluindo o título. 

O senhor Bourbaki
«Quem foi Bourbaki? Por estranho que pareça, o senhor Bourbaki nunca existiu. Nem senhor nem senhora. Trata-se de uma organização secreta e iniciática, do inventor da noção de estrutura matemática, de um dos maiores movimentos abstraccionistas do século XX, de uma pequena, mas influente comunidade de matemáticos. Tudo começou no início do século XX. Por essa altura, a escola alemã, liderada por Hilbert, insiste na abordagem axiomática formal e rigorosa. Naturalmente, começa a florescer mas, porque em 1914 rebenta a I Guerra Mundial, esse estilo-moderno não tem oportunidade de vingar noutros países e os alemães poupam a sua elite científica aos horrores da guerra, ao contrário dos franceses que, em nome das ideias da igualdade e da fraternidade, enviam toda uma geração de jovens cientistas para as trincheiras. Resultado: perdeu-se uma geração, colocando a França, em 1930, com um atraso de pelo menos 30 anos em relação à Alemanha. É nesta altura que intervém uma geração de jovens turcos (matemáticos) saídos no pós-guerra da École Normale. Eram eles: André Weil, Henri Cartan, Claude Chevalley, Jean Delsarte e Jean Dieudonné. Estes cinco jovens, ao iniciarem as suas carreiras académicas, constataram o enorme atraso da matemática francesa. Cartan e Weil, discutem o problema, tendo este último proposto que se encontrassem regularmente, para tentar redigir um texto actual. Esta ideia contagiou os outros membros e, em 1935, aconteceu o primeiro encontro, que durou uma semana. O grupo adoptou o pseudónimo colectivo de Nicolas Bourbaki e, em vez de redigir um tratado de análise, resolveu refutar toda a matemática e reconstruí-la, a partir do nada. Foi, desta forma, criada a Associação dos Colaboradores de Nicolas Bourbaki, em 1935. Foram seus fundadores Henri Cartan, Claude Chevalley, Jean Coulomb, Jean Delsarte, Jean Dieudonné, Char les Ehresmann , René de Possel, SzolemMandelbrojt e AndréWeil. 

Gritar à vontade
O estilo a adoptar seria rigoroso, impessoal e assumidamente dogmático. Nada de vaidades pessoais. Definição, teorema, demonstração e basta. Ignoravam-se motivações, exemplos, referências históricas e aplicações. O edifício ficará totalmente estanque. Em cada livro Bourbaki só serão permitidas referências a resultados demonstrados nos volumes anteriores. Este tratado, destinado a unificar para sempre toda a Matemática, terá o nome de Élements de Mathématique. Trata-se de um plano para os primeiros volumes desta enciclopédia que, fatalmente, terá de iniciar-se com o fundamento mais básico: A Teoria dos Conjuntos.
Os congressos do grupo Bourbaki terão lugar três vezes por ano, sempre no campo, já que o bucolismo é convidativo à meditação. Não haverá referências pessoais. O único nome a figurar nas obras será o de Bourbaki e qualquer texto com este nome só pode ser publicado por unanimidade. Qualquer membro tem direito de veto, é obrigado a manter o segredo da sua pertença ao grupo e retirar-se do mesmo aos cinquenta anos de idade. Nos congressos, todos os membros podem e devem interromper-se, gritando à vontade. A matemática será discutida aos gritos, numa anarquia total. A qualquer momento, um membro pode ficar encarregado de redigir um capítulo que, no dia seguinte, pode ser rasgado pelos outros membros os quais, por sua vez, encarregarão um segundo membro de escrever uma outra versão. E assim sucessivamente.
Por incrível que pareça, Bourbaki publicou vários volumes. A Teoria dos Conjuntos viu a luz do dia em 1939 e, desde então (até 1998), Bourbaki publicou 41 volumes. Este volume sobre a Teoria dos Conjuntos consta da parte I, que se designa As Estruturas Fundamentais da Análise, da qual constam os seguintes assuntos: Teoria dos Conjuntos, Álgebra, Topologia Geral, Funções de Variável Real, Espaços Vectoriais Topológicos e Integração. Só para se chegar aos números reais, com todas as demonstrações necessárias, foram precisas mais de 3000 páginas. A título de curiosidade informa-se que, em 1965, foi editado o seu trigésimo primeiro volume. 

Provável origem do nome
Bourbaki tem uma tradição de paródia surreal, começando pelo próprio nome. Napoleão teve um general de nome Bourbaki, nome esse que foi aproveitado numa aula de praxe, na École Normale, tendo os alunos inventado uma carreira fictícia para Bourbaki. Primeiro, foi Membro da Academia das Ciências da Poldávia e, mais tarde, professor na Universidade de Nancago (Nancy) e Chicago, universidade na qual Dieudonné, o principal redactor de Bourbaki, leccionava. As próprias actas dos congressos, que eram registadas no pasquim La Tribu, são de uma alegria hilariante. Nas milhares e milhares de páginas publicadas, este espírito permanece. Algures, na obra de Bourbaki, há uma gralha propositada, que transforma um objecto filtrante à esquerda e à direita, num debochado flirtante à esquerda e à direita». In Armando Araújo, Cinco Turcos em Paris, Nicolas Bourbaki, Matemática Lúdica. 

A amizade de Armando Araújo 
Cortesia de AA/JDACT