terça-feira, 27 de outubro de 2015

Estudos para a história dos cristãos novos em Portugal. J. Lucio D’Azevedo. «Pode-se dizer que eram criaturas de excepção, portadores das melhores energias da raça, essa que, ao cabo de inúmeros labores, chegavam enfim à nova terra…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A existência, no seio da comunidade portuguesa, de grupos numerosos adictos à crença judaica, constituiu, desde os tempos remotos da nacionalidade, e ainda antes d’ela definitivamente formada, um factor importante de desequilíbrio social, a que, umas vezes o poder ocorria como leis de excepção, outras vezes o desgosto popular opunha o saque, o incêndio, a matança, como elemento compensador; leis e explosões de selvagem violência bem depressa esquecidas, porque a pertinácia da raça estranha podia mais, na sua passividade, que o árbitro empírico dos governos e o furor intermitente do populacho. Mais antigos na Península que os mouros, os godos e os romanos, os judeus iam buscar, às épocas longínquas da bíblia, a origem do seu assento no país e, ora alegavam que os primeiros da sua estirpe tinham vindo, trazidos da Babilónia, por Nabucodonosor; ora pretendiam que já antes, no tempo de Salomão, fora a Espanha vassala e tributária do grande rei. Se bem careçam de fundamento histórico histórico tais razões, com que, desde o século XIV, os judeus perseguidos reclamavam o direito do viverem na terra que seus maiores por tantos anos tinham habitado, certo é que antiquíssima foi a dada da sua vinda, e precedente a quaisquer memórias, tradições ou monumentos existentes na antiga Espanha.
Não parece temerário supor terem vindo os primeiros nas armadas dos fenícios, seus vizinhos, e que a dispersão final da raça, após a tomada de Jerusalém pelos romanos, encaminhasse muitos outros para junto dos seus irmãos, que na Ibéria hospitaleira e fecunda prosperavam. Mas, já antes d’isso, Roma, como centro da civilização e do comércio no mundo antigo os atraía, e d’ali, impelidos pelo instinto nómada e pelo amor do lucro, reemigravam para as terras da bacia do Mediterrâneo, até às colunas de Hercules, tal como hoje para a América e mais países, à cata de fortuna, sendo de crer que, também por esse meio, as colónias da sua raça na Espanha consideravelmente aumentassem. Destes primeiros tempos data certamente o antagonismo dos nativos. Astutos, pertinazes e ousados, os adventícios possuíam já as qualidades das raças afeitas à adversidade. A emigração, com as longas viagens cheias de perigos, em mal aparelhadas naves, não era como hoje facto banal, sim escola de valor e de energia.
Os aventureiros de fora possuíam de certo mais rija têmpera que os naturais, habituados ao aconchego do viver sedentário; e os que vinham fugidos à fúria do vencedor cruel, já deixavam pelo caminho os fracos, sucumbidos à dureza do cativeiro e às misérias da peregrinação. Pode-se dizer que eram criaturas de excepção, portadores das melhores energias da raça, essa que, ao cabo de inúmeros labores, chegavam enfim à nova terra, nos confins do mar conhecido». In J. Lucio D’Azevedo, Estudos para a história dos cristãos novos em Portugal, Revista de História nº 2, publicação trimensal, Lisboa, Livraria Clássica Editora 1912-1928, pp. 65-73, 1912.

Cortesia RHistória/JDACT