terça-feira, 6 de outubro de 2015

Cornélia. As Mulheres que Fizeram Roma. Carla Quevedo. «Para Juvenal, tudo na virtuosa ‘Cornélia’ era antipático: os antepassados gloriosos, o conhecimento da língua grega, a abundância reprodutora»

Cornelia, mãe dos Gracos, philippfriedrich, 1794 
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«Deus não podia estar em todo o lado, por isso criou as mães». In Provérbio Judaico

«No início de Sobre a bravura das mulheres, Plutarco dá exemplos de diferenças entre mulheres com virtudes que no seu entender seriam comparáveis às dos grandes homens gregos e romanos que descrevera nas Vidas paralelas. Para se referir a Cornélia, Plutarco escolhe dizer que a sua nobreza de espírito, dignidade generosa ou confiança em si mesma, não se expressava de maneira idêntica à de Olímpia, mãe de Alexandre Magno, indicando ser essa a qualidade que as unia. Imaginamos Olímpia mais autoritária e Cornélia mais persuasiva, embora ambas nobres de espírito na medida em que uma mulher podia sê-lo. A palavra magnanimidade, a megalopsichía, ou grande alma, uma das virtudes aristotélicas que caracterizavam homens como Alexandre ou Júlio César, ou antes deles, Aquiles e Ájax, não aparece na descrição destas mulheres. A elevação feminina surge descrita no ensaio moral de Plutarco estando associada ao espírito e à mente: meglófron, grandeza da mente ou nobreza de princípios. A diferença é subtil, mas vai ao encontro da ideia generalizada de que as mulheres não tinham alma, embora houvesse de igual modo muitas dúvidas acerca das suas capacidades racionais e espirituais. Desalmadas ou inimputáveis, todos os abusos seriam tolerados (e não seriam considerados abusos) porque havia a convicção de que as mulheres estavam mais próximas das crianças do que dos adultos. Plutarco, que escreve no primeiro século da nossa era, é particularmente elogioso no seu ensaio moral sobre as mulheres, sobretudo para a época, mas também num certo sentido para os tempos actuais. A comparação é naturalmente lisonjeira para Cornélia e para os seus filhos, equiparados por omissão a Alexandre Magno.
O poeta Juvenal tinha uma opinião diferente. Autor de 16 poemas satíricos publicados em cinco livros, uma obra que se crê ter sido escrita entre os anos 110 e 130 da nossa era, coincidentes com os seus últimos de vida, Juvenal satirizou comportamentos viciosos e pessoas da sociedade romana. O seu estilo retórico foi comparado ao do historiador Tácito e a sua habilidade para construir versos hexâmetros foi louvada. Na célebre sátira VI, na qual Juvenal faz uma crítica amarga às mulheres romanas, numa passagem em que despreza os benefícios de casar com uma mulher perfeita, Cornélia é alvo da sua análise desapiedada. Para Juvenal, tudo na virtuosa Cornélia era antipático: os antepassados gloriosos, o conhecimento da língua grega, a abundância reprodutora. Para esclarecer o quanto lhe desagradava uma mulher assim, o poeta satírico escreveu que preferia mil vezes casar com uma prostituta a passar o resto dos dias com Cornélia.
Cornélia era a mais nova dos quatro filhos de Públio Cornélio Cipião Africano, o célebre general que derrotou o inimigo mais temido de Roma, o cartaginês Aníbal, na Segunda Guerra Púnica, na célebre batalha de Zama, em 202 a.C., e de Emília Paula, filha de Lúcio Emílio Paulo, general romano, que Aníbal vencera na batalha de Canas, em 216 a.C.. Cipião Africano é um dos heróis mais estimados e respeitados da história de Roma. Dotado de uma inteligência invulgar, instruído e amante da civilização grega, o general Públio Cornélio Cipião era um estratega minucioso e um líder sábio com as suas tropas. A capacidade de persuasão de Cipião foi elogiada por historiadores como uma característica que era própria de um homem sofisticado. As sucessivas vitórias em Cartagena seriam o início de um caminho triunfal que terminaria em Zama, com a vitória sobre Aníbal, que acabaria por se render. Com o triunfo em África, Cipião recebeu o cognome Africano. Foi eleito censor e líder do Senado, princeps senatus, em 199, e de novo eleito para um segundo consulado anos mais tarde. Acreditava que era protegido de Júpiter e que o seu destino dependia da vontade divina. Não parece, no entanto, ter demonstrado a vontade habitual de assumir o poder invocando a ascendência divina em que acreditava. Cipião é nesta medida e noutras tão ou mais importantes uma excepção nos ilustres heróis de Roma». In Carla Hilário Quevedo, As Mulheres Que Fizeram Roma, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-626-688-2.

Cortesia EsferaLivros/JDACT