«O vago, o aéreo
desta matéria poética faz impressão. E não é que tal vacuidade exclua rigor:
antes o vocabulário de Eugénio de Andrade, a sua sintaxe, a sóbria margem do
seu metaforismo são instrumentos de expressão ávida de justeza. Mas porque os estados
de alma e espírito captados aqui são de um grau excepcionalmente elevado em
língua portuguesa». In Vitorino Nemésio
Poética
«O acto poético
é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo de Conhecimento, que é
também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não
há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas o que vem à tona
é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito
humano atenta mais facilmente nas diferenças que nas semelhanças,
esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal
coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser
palavra, de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros
afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são
capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar
de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de
ser, que é poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura, é uma
reconciliação, uma suprema harmonia
entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.
Essa revelação
do poeta, e dos outros com ele, essa descida ao coração da alma, de que
Heraclito encontrou a fórmula, essa coragem de mostrar o que achou no caminho,
e nunca é fácil, nem alegre, nem irresponsável revelar o que se encontrou ou sonhou
nas galerias da alma, é o que chamarei agora dignidade do poeta, e com ele a do
homem. Porque é sempre de dignidade que se trata quando alguém dá a ver o que
viu, por mais fascinante ou intolerável que seja o achado. O futuro do homem é o homem, estarmos de acordo. Mas o homem do
nosso futuro não nos interessa desfigurado. Este animal triste que nos habita
há milhares de anos, mas o homem do nosso futuro tão longe de conhecer, é o
fruto de uma desfiguração, acção de uma cultura mais interessante em ocultar ao
homem o seu rosto que em trazê-lo, belo e tenebroso, à luz limpa do dia. É contra
a ausência do homem no homem que a palavra do poeta se insurge, é contra esta
amputação no corpo vivo da vida que o poeta se revela. E se ousa cantar no
suplício é porque não quer morrer sem se olhar nos seus próprios olhos, e reconhecer-se,
e detestar-se, ou amar-se, se for caso disso, no que não creio. De Homero a S.
João da Cruz, de Virgílio a Alexandre Blok, de Li Bay a William Blake, de Bashô
a Kavafis, a ambição maior do fazer poético foi sempre a mesma: Ecce Homo, parece dizer cada
poema. Eis o homem, eis o seu efémero rosto feito de milhares de rostos, todos
eles esplendidamente respirando na
terra, nenhum superior a outro, separados por mil e uma diferenças, unidos por
mil e uma coisas comuns, semelhantes e distintos, parecidos todos e contudo
cada um deles único, solitário, desamparado. É a tal rosto que cada poeta está
religado. A sua rebeldia é em nome dessa fidelidade. Fidelidade ao homem e à
sua lúcida esperança de sê-lo inteiramente; fidelidade à terra onde mergulha as
raízes mais fundas; fidelidade à palavra que no homem é capaz da verdade última
do sangue, que é também verdade da alma.
Canção
«Tinha um cravo
no meu balcão;
veio um rapaz e
pediu-mo
- mãe, dou-lho
ou não?
Sentada, bordava
um lenço de mão;
veio um rapaz e
pediu-mo
- mãe, dou-lho
ou não?
Dei um cravo e
dei um lenço,
só não dei o
coração;
mas se o rapaz
mo pedir
- mãe, dou-lho
ou não?»
Canção
Infantil
«Era um amieiro.
Depois uma
azenha.
E junto
um ribeiro.
Tudo tão parado.
Que devia
fazer?
Meti tudo no
bolso
para os não
perder.
Não canto porque
sonho.
Canto porque és
real.
Canto o teu
olhar maduro,
o teu sorriso
puro,
a tua graça
animal.
Canto porque sou
homem.
Se não cantasse
seria
o mesmo bicho
sadio
embriagado na
alegria
da tua vinha sem
vinho.
Canto porque o
amor apetece.
Porque o feno
amadurece
nos teus braços
deslumbrados.
Porque o meu
corpo estremece
por vê-los nus e
suados.
Foi para ti que
criei as rosas.
Foi para ti que
lhes dei perfume.
Para ti rasguei
ribeiros
e dei às romãs a
cor do lume.
Foi para ti que
pus no céu a lua
e o verde mais
verde nos pinhais.
Foi para ti que
deitei no chão
um corpo aberto
como os animais».
Poemas de
Eugénio de Andrade, in ‘Antologia
Breve’
In
Eugénio de Andrade, Antologia Breve, Obra de Eugénio de Andrade nº 25, Fundação
Eugénio de Andrade.
Cortesia
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