domingo, 18 de outubro de 2015

O Torturado de Seide. Camilo Castelo Branco. Alberto Pimentel. «Muitas vezes acompanhei minha mãe e irmãs em visita àquela nossa parenta, que nos recebia na grade com a freira e nos regalava com rebuçados e ‘bonbons’»

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Este livro não aspira a ser mais que uma leve conversação com o leitor sobre assuntos camilianos e, fundamentalmente, ainda um preito de veneração e saudade que eu venho render à memoria do imortal Torturado de Seide. In Alberto Pimentel, Trafaria, Maio de 1921.

«(…) Camilo viu-o levantar e demolir. Riu-se quando o dropp lhe parecia prejudicar a beleza do horizonte marítimo e o sorriso alegre da praia. Mas creio bem que, na hora em que o dropp foi a terra, Camilo se riria da sua própria intransigência estética no tempo em que, indignado, clamava: Aquelles paus são sinistros como o cavallo de Tróia; tudo aquillo é muito serio: tem não sei que de funéreo dos carroçoens do Lagoia. Julgo que este artigo poderá ter para a gente moça do Porto um duplo interesse: o de dar noticia de uma velharia extinta e o de ser comentário a uma sátira antiga.

A urna da prata
É já muito conhecida do público a carta dolorosa em que o romancista Camilo Castelo Branco, por intermédio de Francisco Castro Monteiro, propunha vender á senhora Camila Faria, viuva de João Albuquerque Melo Forbes e abastada proprietária, uma taça de prata que ao proponente havia sido oferida pela colónia portuguesa de Hongkong (?). A proposta, já o tem dito e redito a imprensa, não foi aceita. Falo nisto por dois motivos, mas apenas como quem passa de fugida por cima de brasas: Para informar de que o objecto de que se trata tinha o feitio de urna; e que a inscrição-dedicatória foi conservada por mim no livro Entre o café e o cognac, quando descrevo o gabinete de Camilo no Porto, em 1872, habitando ele então o prédio n.º 860 da rua do Bonjardim. Eis o teor da inscrição: Ao Ill.mo e Ex.mo Snr. Camillo Castello Branco, os sócios da Bibliotheca Portugueza De Hongkong 1869. Depois daquela época nunca vi na casa de Seide a urna de prata, nem me consta que outros a vissem. Ignoro que destino teria.

A Freira de S. Bento… e de Camilo
Desde os meus quinze anos conheci no convento da Ave Maria, no Porto, a freira Isabel Cândida, cujos apelidos de família eu então ignorava. Sabia apenas que ela tinha educado naquele convento a filha de Camilo, dona Bernardina Amélia Castelo Branco, a qual eu nunca vi porque alguns anos antes, em 1865, saira para casar. A freira Isabel Cândida foi, depois disso, professora de minha prima Aureliana Coelho Bragante ou sua mãezinha, como se dizia no jargão das meninas do coro. Muitas vezes acompanhei minha mãe e irmãs em visita àquela nossa parenta, que nos recebia na grade com a freira e nos regalava com rebuçados e bonbons. Outras vezes éramos convidados a ir lá almoçar e então também ia comnosco meu pai, que salvára minha prima em doenças graves e tinha mais clientes de partido naquela comunidade. Ah!, quanto me lembro ainda desses almóços freiráticos, em que a doceria era selecta, o café e o chocolate primorosos, especialmente o chocolate, consistente e aromático, bem espanhol, que tomávamos lardeando-o com um delicioso pão de ló fofo e loiro.
Minha prima estimava ver-se rodeada de parentes, ria de vontade com os ditos de meu pai, que fora sempre um homem dotado de bom humor, e a freira Isabel Cândida conversava com animação e espirito, contando casos do convento e casos da cidade, como se conhecesse estes tão bem como aqueles. Mas a freira era velha e feia, trigueira, angulosa e alta, tinha a voz forte, um nariz respeitável, e sombras de buço. Eu nunca pensei, nem o ouvi dizer a ninguém, que aquela mulher, tão balda de encantos feminis, pudesse haver inspirado atenções afectuosas a um homem vulgar, quanto mais a um homem superior, tal como Camilo Castelo Branco. Nem me quis parecer que dentro daquele hábito negro de beneditina tivesse palpitado um coração mundano e frágil. Quea freira Isabel Cândida conhecesse Camilo era de presumir, visto que lhe tutelára a filha no convento; e que conversasse com êle quando lhe levava a pupila á grade era bem natural, seria a coisa menos venenosa deste mundo.
Assim, pois, foi que eu interpretei as palavras de Camilo numa carta dirigida á mãe de sua filha e por mim publicada no Romance do romancista: As minhas relaçoens com a freira acabaram, e eu te direi os motivos que se deram. Supus que seriam apenas simples visitas no locutório, mais ou menos íntimas, sem julgar que pudessem ter sido relações inconfessáveis, até mesmo porque o romancista não as ocultava da mulher que apaixonadamente se deixara raptar por êle». In Alberto Pimentel, O Torturado de Seide, Camilo Castelo Branco, Livraria Manuel dos Santos, Lisboa, 1921.

Cortesia de LMSantos/JDACT