domingo, 11 de outubro de 2015

A Farsa. Christopher Reich. «Tudo que se via era uma boca decidida e bochechas ásperas com uma barba de dois dias. Usava o seu velho casaco de patrulheiro florestal de esqui. Nunca escalava sem ele. Logo abaixo, a sua mulher…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«A brisa fria varreu a planície, carregando a borboleta em suas correntes. O curioso insecto voou de um lado para outro, subindo, mergulhando, planando para cima e para baixo. Era um lindo espécime, com as asas pintadas de um amarelo vivo coberto por uma renda preta, e não se parecia com nenhum outro da região. Seu nome também era incomum: Papilio panoptes. A borboleta sobrevoou a estrada vigiada, passou pelos rolos de arame farpado e pela cerca de segurança electrificada. Do outro lado havia um campo de flores silvestres, impressionantes por sua variedade e cor. Não se via construção alguma: nenhuma casa, paiol ou prédio de qualquer tipo. Somente os montes de solo recém-compactado, quase indiscerníveis debaixo das flores, davam mostras do trabalho que acabara de ser concluído. Apesar da longa viagem, a borboleta ignorou as flores. Não buscou seu pólen de cheiro forte nem se deleitou com seu doce néctar. Em vez disso, decidiu voar mais alto, aparentemente obtendo sustentação com o próprio ar. E ali ficou, uma bandeira amarela tremeluzente suspensa no céu pálido de Inverno. Não aterrissou em nenhum arbusto de lavanda para descansar. Não bebeu de nenhum dos velozes riachos que desciam das montanhas escarpadas e majestosas e corriam pelas férteis planícies de grama. Na verdade, não se aventurou sequer uma vez do lado de fora do perímetro de um quilómetro quadrado, traçado com precisão pela cerca. Satisfeita em pairar acima dos campos coloridos, ficou voando de um lado para outro, dia após dia, noite após noite, sem parar para comer, beber ou descansar. Depois de sete dias, um vento brutal, o nashi, chegou do norte. Desceu os desfiladeiros rugindo e projectou-se pelas planícies, ganhando velocidade e impacto e fustigando tudo que encontrava pela frente. A borboleta não pôde lutar contra as incansáveis correntes. Suas voltas pelo interior do perímetro a haviam deixado cansada e vulnerável. Uma rajada em espiral a colheu, girou e lançou-a no chão, despedaçando seu corpo frágil. Um guarda que patrulhava a estrada reparou na mancha amarela e preta sobre a terra batida e parou o seu jipe. Aproximou-se com cautela e ajoelhou na relva que chegava à altura de seus tornozelos. Aquela borboleta era diferente de todas as que tinha visto. Em primeiro lugar, era maior. Suas asas eram rígidas, com pedacinhos serrilhados de um metal fino como papel projectando-se da superfície sedosa. O corpo, coberto de penugem, era dividido em duas partes conectadas por um fio verde. Intrigado, pegou-a para examinar. Como todos os que trabalhavam ali, era, em primeiro lugar, um engenheiro e, com relutância, um soldado. Ficou abalado com o que viu. Dentro do corpo da borboleta havia uma bateria de alumínio do tamanho de um grão de arroz e, presa a ela, um transmissor de micro-ondas. Usando a unha do polegar, ele afastou a pele que recobria as antenas e revelou um feixe de cabos de fibra óptica, finos como cabelo humano. Não, disse para si mesmo. Não pode ser. Não tão cedo. De repente, já estava correndo de volta para o jipe. Palavras percorriam a sua mente em turbilhão. Explicações. Teorias. Nenhuma delas fazia sentido. O pé esbarrou numa pedra solta e ele se estatelou no chão. Levantando-se aos tropeços, andou apressado até o jipe. Cada minuto era vital. As suas mãos tremiam quando ligou o rádio para os seus superiores. Fomos encontrados.

Jonathan Ransom limpou o gelo dos óculos e ergueu os olhos para o céu. Se o tempo piorar, pensou, vamos ter problemas. A neve caía com mais força. Um vento rugia e fazia chover gelo e cascalho em seu rosto. Os picos escarpados e conhecidos que rodeavam o vale alpino haviam desaparecido atrás de um esquadrão de nuvens ameaçadoras. Ele ergueu um dos esquis, depois o outro, inclinando-se para a frente enquanto ia subindo a encosta. Películas de nylon presas à parte inferior dos esquis faziam-nos aderir à neve. Fixações de caminhada nas botas permitiam-lhe andar com desenvoltura. Era um homem alto, de 37 anos, quadris estreitos e ombros largos. Um gorro de lã justo escondia os cabelos fartos e prematuramente grisalhos. Óculos de neve protegiam os olhos negros. Tudo que se via era uma boca decidida e bochechas ásperas com uma barba de dois dias. Usava o seu velho casaco de patrulheiro florestal de esqui. Nunca escalava sem ele. Logo abaixo, a sua mulher, Emma, subia com dificuldade a encosta da montanha, usando uma parca vermelha e calça preta. O seu ritmo era irregular. Dava três passos para cima, depois descansava. Dois passos, e descansava. Tinham acabado de passar metade da subida e ela já parecia exausta». In Christopher Reich, A Farsa, tradução de Fernanda Abreu, Editora Arqueiro, S. Paulo, 2008, ISBN 978-858-041-013-6.

Cortesia de EArqueiro/JDACT