sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Os Pássaros de Seda. Rosa Lobato de Faria. «Preciso que me tragas aqui, às onze em ponto, uma fatia de bolo de mel, há bolo de mel? Há sim, senhor doutor, e um cálice de peitoral Ferreirinha que eu vou fazer serão…»

Cortesia de wikipedia

«(…) Quem não o conhecer que o compre, doutor Bento. Olhe aqui o balãozinho aquecido e o cheirinho do café! Quer um charuto da caixa? Está aqui. E fica a saber que a Margarida não é para o seu dente, é só uma menina e se ela for embora eu vou com ela. Margarida? Que Margarida? Não sei de quem é que estás a falar. Com um filho de dez anos, que já percebe tudo, a sorte dele é estar no colégio interno, devia mas era ter vergonha. E tu que idade tens, sabichona? Tenho vinte e cinco mas podia ser sua mãe. E não se esqueça que estou cá desde os doze e se não fosse ter uma joelhada tão certeira já andava há que tempos desgraçada aí pelos caminhos com algum bastardo Proença pela mão. Mais café? Está bom pois, foi a Joana-Dália quem o fez. Ninguém faz café como ela, por isso trate-a bem que ela é competente e muito séria. Se eu tivesse aquela dentuça também era sério. Podes levar. Quando é que vais à terra? Nunca.
Mas o homem põe e Deus dispõe e Tiana foi chamada à terra por doença e por fim falecimento da mãe e abriu uma crise na cozinha que pôs dona Joana em completa histeria. Esta gentinha passa a vida a ter ataques e a morrer e deixam aqui uma pessoa a braços com almoços e jantares, ainda se o Bento não fosse exigente, mas não me vai perdoar nem um molho, nem uma omelete, nem sequer um pâté. A menina, Teresinha, é que me podia emprestar a sua Conceição. Nem pense, tenho os anos do meu sogro e nós também almoçamos e jantamos, não é só o Bento, a menina tem seis criadas, não me diga que nenhuma sabe fazer uma açorda. Isso era preciso que o Bento comesse açorda, odeia, nem parece alentejano, não sei o que hei-de fazer, Bem, vou andando, que o Henrique está a chegar de Lisboa, foi vender a cortiça e tenho souflé de camarão de entrada, se descai a Conceição despede-se, saiu venenosa a Teresinha, escadaria abaixo.
Era bem feita e talvez a Conceição quisesse cá vir fazer quinze dias. E agora como é que eu explico à Dália, à Jacinta, à Margarida, à Joaquina, que não sei cozinhar? Mas não foi preciso explicar. Elas já sabiam, a Joaquina e a Margarida puseram-se ao fogão, a Dália nos doces, a Jacinta na loiça, deram conta do recado enquanto o Diabo esfrega um olho. O Bento não teria dado por nada se a Joana não aparecesse à mesa afogueada, ela que dizia sempre que o jantar era o repouso do guerreiro e a mulherzinha digna desse nome devia apresentar-se linda e fresca, como se a vida fosse um mar de rosas e nenhuma crise doméstica pudesse, nem de longe nem de perto, afectar o apetite e a disposição do seu amo e senhor.
Bem prega frei Tomás, sentou-se na borda da cadeira desgrenhada e a limpar o resto das lágrimas, Agora a Tiana resolveu ir à terra e eu que me amanhe, se o jantar estiver um lixo não se admire, foram aquelas incapazes que o fizeram, nem faço ideia o que é que vai aparecer na mesa, não se espante se for chouriça assada e pão com azeitonas, deve ser tudo o que elas sabem fazer. Joana-Dália trouxe a vichyssoise, ligada, geladinha, o gostinho do alho francês diluído nas natas, o Bento repetiu, o peixe era rolinhos de linguado com feijão-verde cortado finíssimo, manteiga e limão, a Joaquina tinha extrapolado, a carne lombinhos de porco com molho de maçã e croquetes de batata, lindos, todos dourados por igual, a sobremesa fatias da China, já nem conseguiu provar a salada de frutas apresentada em cama de merengue.
Quem é que fez este jantar, perguntou o doutor Proença à Dália-Joana. Fomos nós. Nós quem, quero-as aqui todas e da cozinha vieram a Margarida e a Joaquina, acharam justo que viesse a Jacinta, tanta loiça tinha lavado, batatas descascado, claras separado e ela veio, toda envergonhada, a esconder o riso no avental. Pois a partir de hoje vão todas aumentadas no ordenado e tu do avental às riscas cor-de-rosa, leva-me ao escritório o café e a garrafa de Napoleão daí por mais ou menos dez minutos. Margarida entrou no escritório com a pesada bandeja, tremia tanto que a xícara, mal apoiada no pires, batia contra a colher de prata, Estás nervosa? Não estou habituada a servir os senhores, o meu serviço é limpar e arrumar, o senhor doutor desculpe e se não precisa mais de mim... Preciso. Preciso que me tragas aqui, às onze em ponto, uma fatia de bolo de mel, há bolo de mel? Há sim, senhor doutor, e um cálice de peitoral Ferreirinha que eu vou fazer serão. Quando a Margarida apareceu grávida ainda a Tiana não tinha voltado da terra. Confiou-se à Joana, olha a minha desgraça, a Tiana se calhar sabe de alguma coisa que possas tomar, elas às vezes comem quinino, aquilo das sezões, também há umas ervas amargas, faz-se um chá mas não sei o nome, precisávamos de alguém mais velho e a Tiana que não volta». In Rosa Lobato de Faria, Os Pássaros de Seda, licença editorial por cortesia de Asa Editores, Círculo de Leitores, 2002, ISBN 972-422-650-6.

Cortesia de ASAE/CLeitores/JDACT