A
sua última duquesa. Toscânia 1559
«(…) Os dois primos encontravam-se
mesmo à porta da cozinha abobadada, do lado de dentro, sem ninguém dar pela sua
presença devido ao caos fumegante provocado pelos preparativos do banquete.
Lucrécia tinha a boca seca: perante esta actividade fervilhante, uma sensação
efervescente de ansiedade começava a dissipar a tristeza que a notícia de Giulietta
lhe causara. Humedeceu os lábios e em seguida deu uma cotovelada a Giovanni e
apontou para uma mesa comprida. Anda, Vanni, tira uma!, disse ela em voz baixa.
Porquê eu? Porque o Angelo gosta mais de ti do que de mim e, se te vir a
tirá-la, não ficará tão irritado como ficaria comigo. Tu sabes que é por isso
que tudo é sempre culpa minha, porque me obrigas afazer tudo por ti. Giovanni
parecia zangado, mas aproximou-se da mesa e tirou uma de cerca de uma dúzia de
romãs que estavam numa taça de madeira. Deu-a à prima. Lucrécia passou o dedo do
meio pela coroa pontiaguda da romã, aproximou-a do nariz e em seguida enterrou
a unha do polegar na casca, fazendo um pequeno orifício em meia-lua. Esgravatou
com o dedo, revelando uma mancha redonda de sementes brilhantes vermelho-rosado,
retirou algumas e depositou-as na mão estendida de Giovanni. Ele sorriu e levou
a palma da mão à boca. Ela retirou mais umas quantas para si.
Ficaram ali durante algum tempo a
comer sementes de romã, a observar e a escutar. O grande tampo de pedra
cinzenta do forno estava calcinado e brilhava por cima das chamas. O fumo saía
em rolos e contornava a saliência de pedra, como se emergisse da boca de um
dragão sonolento pensou Lucrécia; ganhava um tom azulado ao enovelar-se num
feixe de luz que entrava por uma janela alta. As labaredas eram intensas, e os
contornos dos três homens que as vigiavam pareciam difusos, como se se resumissem
pinceladas cor de laranja e azul muito escuro. Um deles afastou-se do calor e
limpou o suor da face, fazendo uma careta. Nas prateleiras da cimalha, estavam
pendurados vários nacos de carne embrulhados em pano, a defumar; assim
suspensos dos terríveis ganchos de ferro lembravam forcas, uma sugestão
perturbante. E no outro extremo da cozinha, viam-se duas barricas de carvalho
abertas debaixo de uma janela. Lucrécia estremeceu. Lá dentro, a superfície do
líquido agitou-se. Puxou a manga de Giovanni e indicou. Enguias, apontou, com
um esgar. E que tal os cisnes?, perguntou Giovanni. Apontou para outra mesa comprida.
Travessas, pratos e panelões estavam empilhados a uma ponta, taças enormes de
fruta e montes de vegetais descascados acumulavam-se no meio e seguiam-se
pilhas de alcachofras, abóboras cor de laranja e rosadas e uma colorida taça de majólica cheia de feijão-verde.
Na outra ponta, junto da qual se encontravam os dois primos, viam-se os corpos
inertes de dois cisnes descomunais. Jaziam lado a lado, com o pescoço esguio
enrolado e sem vida. A cabeça de um deles estava pendurada, e os olhos,
vítreos, contemplavam o chão.
Lucrécia aproximou-se e tocou num
com a ponta do dedo. A carne estava fria, como argila crua, debaixo das penas
aveludadas. Os cisnes acasalavam para a vida,
pensou. Teriam estes dois morrido juntos,
acompanhando-se até à morte, ou a proximidade seria apenas obra do acaso? Outros
dois cisnes lamentariam agora a perda dos seus parceiros enquanto nadavam sozinhos
em águas desconhecidas? Lucrécia abstraiu-se dos cisnes e viu noutra mesa
uma profusão espantosa de esculturas de açúcar. Tocando nas costelas de
Giovanni, apontou para a exposição. Aquelas não são..., disse ele. Ela interrompeu-o:
Cópias das esculturas preferidas do papá? Sim. As do jardim das traseiras. Não
são lindas? Giovanni esfregou umas das esculturas com dois dedos e levou-os à
boca. Nhamm. Tens razão. São
lindas, concordou. Não, Vanni! Se o Angelo te vê, mata-te! Giovanni resfolegou
e em seguida voltou a passar os dedos húmidos pela parte de trás da sorridente
ninfa de açúcar. Chupou-os outra vez. Sorriu. És nojento! Giovanni abriu a boca
para retorquir, mas antes que pudesse dizer alguma coisa um grito assustou os
dois primos, que deram meia volta. Lucrécia ficou sem fôlego. O momento
prolongou-se. Por instantes, o caos que reinava na cozinha transformou-se num
quadro pintado, silencioso, suspenso e imóvel». In Gabrielle Kimm, A sua Última
Duquesa, O que aconteceu a Lucrécia de Médici?, 2010, tradução de Maria Duarte,
Planeta Manuscrito, Lisboa, 2012, ISBN 978-989-657-328-7.
Cortesia de Planeta/JDACT