sábado, 24 de outubro de 2015

O Cemitério de Praga. Umberto Eco. «… mas, pelo pouco que escutei, as composições do seu Bach são totalmente desprovidas de harmonia, frias como uma noite de inverno, e as sinfonias do tal de Beethoven são uma orgia de estardalhaço»

Cortesia de wikipedia

O passante que naquela manhã cinzenta
«(…) De volta ao salão, o visitante identificaria, diante da única janela pela qual penetrava a pouca luz que clareava o impasse, um indivíduo ancião sentado à escrivaninha, envolto num roupão, e que, tanto quanto o visitante pudesse espiar por cima dos ombros dele, se ocupava em escrever aquilo que estamos prestes a ler.

Quem sou? 24 de Março de 1897
Sinto um certo embaraço ao começar a escrever, como se pusesse minha alma a nu, por ordem, não, Deus do céu!, digamos por sugestão, de um judeu alemão (ou austríaco, mas dá no mesmo). Quem sou? Talvez seja mais útil me interrogar sobre minhas paixões do que sobre os factos da minha vida. Quem amo? Não me vêm à mente rostos amados. Sei que amo a boa cozinha: ao pronunciar o nome La Tour d’Argent, experimento como que um frémito por todo o corpo. É amor? Quem odeio? Os judeus, me ocorreria dizer, mas o facto de eu estar cedendo tão servilmente às instigações daquele doutor austríaco (ou alemão) sugere que não tenho nada contra os malditos judeus. Deles, sei apenas o que me ensinou meu avô: … são o povo ateu por excelência, ele me instruía. Partem do conceito de que o bem deve-se realizar aqui, não além-túmulo. Por conseguinte, agem somente para a conquista deste mundo. Os anos da minha meninice foram entristecidos pelo fantasma deles. Meu avô me descrevia aqueles olhos que nos espiam, tão falsos que nos fazem empalidecer, aqueles sorrisos víscidos, aqueles lábios de hiena arreganhados sobre os dentes, aqueles olhares pesados, infectos, embrutecidos, aquelas dobras entre nariz e lábios sempre inquietas, escavadas pelo ódio, aquele nariz que parece o grande bico de uma ave austral... E o olho, ah, o olho... Gira febril na pupila da cor de pão tostado e revela enfermidades do fígado, corrompido pelas secreções produzidas por um ódio de 18 séculos, aperta-se em mil pequenas rugas que se acentuam com a idade, e já aos 20 anos o judeu parece engelhado como um velho. Quando sorri, suas pálpebras inchadas se cerram a ponto de deixarem apenas uma linha imperceptível, sinal de astúcia, dizem alguns, de luxúria, esclarecia a avô... E quando eu crescera o suficiente para entender, ele me recordava que o judeu, além de vaidoso como um espanhol, ignorante como um croata, cúpido como um levantino, ingrato como um maltês, insolente como um cigano, sujo como um inglês, untuoso como um calmuco, autoritário como um prussiano e maldizente como um astiense, é adúltero por um cio irrefreável, resultado da circuncisão, que os torna mais erécteis, com uma desproporção monstruosa entre o nanismo da corporatura e o tamanhão cavernoso daquela sua excrescência semimutilada.
Sonhei com os judeus todas as noites, por anos e anos. Por sorte, nunca encontrei algum, excepto a putinha do guetto de Turim, quando eu era rapaz (mas não troquei mais de duas palavras), e o doutor austríaco (ou alemão, dá no mesmo). Os alemães eu conheci, e até trabalhei para eles: o mais baixo nível concebível de humanidade. Um alemão produz em média o dobro das fezes de um francês. Hiperactividade da função intestinal em detrimento da cerebral, o que demonstra a sua inferioridade fisiológica. No tempo das invasões bárbaras, as hordas germânicas constelavam o percurso com montes desarrazoados de matéria fecal. Por outro lado, mesmo nos séculos passados, um viajante francês logo compreendia se havia transposto a fronteira alsaciana pelo volume anormal dos excrementos abandonados ao longo das estradas. E não somente: é típica do alemão a bromidrose, ou seja, o odor repugnante do suor, e está provado que a urina de um alemão contém 20 por cento de azoto, ao passo que a das outras raças, somente 15. O alemão vive num estado de perpétuo transtorno intestinal, resultante do excesso de cerveja e daquelas salsichas de porco com as quais se empanturra. Eu os vi certa noite, durante a minha única viagem a Munique, naquelas espécies de catedrais desconsagradas, enfumaçadas como um porto inglês, fedorentas de sebo e de toucinho, até mesmo a dois, ele e ela, mãos apertadas em torno daquelas canecas de bebida que por si sós dessedentariam uma manada de paquidermes, nariz com nariz num bestial diálogo amoroso, como dois cães que se farejam, com suas risadas fragorosas e deselegantes, sua túrbida hilaridade gutural, translúcidos de uma gordura perene que lhes unge os rostos e os membros como o óleo sobre a pele dos atletas de circo antigo.
Enchem a boca com seu Geist, que significa espírito, mas é o espírito da cerveja que os estupidifica desde jovens e explica por que para além do Reno jamais se produziu algo de interessante na arte, salvo alguns quadros com rostos repulsivos e poemas de um tédio mortal. Sem falar da sua música: não me refiro àquele Wagner barulhento e funerário que hoje abestalha até os franceses, mas, pelo pouco que escutei, as composições do seu Bach são totalmente desprovidas de harmonia, frias como uma noite de inverno, e as sinfonias do tal de Beethoven são uma orgia de estardalhaço». In Umberto Eco, O Cemitério de Praga, 2010, tradução de Joana Angélica Melo, ePUBr, Biblioteca Digital Brasileira, Editora Record, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.

Cortesia de ERecord/JDACT