quinta-feira, 29 de outubro de 2015

As vésperas esquecidas. Maria I Barreno. «O pai ficou um tanto alarmado, chegou a ter uma conversa séria com o futuro genro, de homem para homem. De nada serviu. Bárbara casou, recolheu ao lar para ser rainha»

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«Bárbara cozinhava, limpava, lavava, passava a ferro. Sentia frequentemente um aperto no coração, uma solidão, uma nostalgia, nem ela sabia de quê, principalmente no princípio das tardes, quando o tempo parece quase parar numa dormência de sesta. Tinha tendências emotivas, hormonais até corava, chorava e ria com facilidade, comovia-se com a pobreza, com a infância, com a invalidez, com as guerras, enfim, com o mundo. Devia o seu estranho nome a um pai amante de Camões e de palavras cruzadas. Por outros detalhes genealógicos que não serão aqui recordados, para não alongar indefinidamente este relato com as suas muitas raízes no tempo, este é o primeiro ponto difícil de todas as histórias, entretecidas sempre com tantas outras coisas, como decidir-lhes o limiar definitivo, o começo que se convenciona, o pai fizera o segundo ano do liceu. Era o homem com mais habilitações literárias na pequena vila onde nascera e onde exercia as funções de escriturário de terceira na repartição de finanças, e era considerado por todos os seus conterrâneos como um letrado. A reputação que ganhara conduziu-o à firme convicção de que teria de a afirmar em todos os actos da sua vida, num crescendo de vigor e perfeição. Mandara a filha estudar até ao quinto ano do liceu, e contribuíra activamente para lhe arranjar um emprego. Bárbara trabalhara cinco anos na repartição de finanças como escriturária de primeira, mais habilitada e hierarquicamente superior ao seu pai. Encorajada por ele, lia o que podia: primeiro esgotou o património paterno, uma biblioteca de vinte livros guardados num baú, depois os livros que comprava com as economias do seu salário. Mais ou menos de três em três meses guardava uma tarde de sábado: metia-se na camioneta, ia à capital de distrito, visitava a única livraria aí existente. A população da pequena vila fazia ahs e ohs. Ao fim desses anos de pioneirismo feminino nas actividades financeiras locais, Bárbara apaixonou-se muito. O pai ficou um tanto alarmado, chegou a ter uma conversa séria com o futuro genro, de homem para homem. De nada serviu. Bárbara casou, recolheu ao lar para ser rainha. E passou a cozinhar, limpar lavar, passar a ferro quotidianamente; a manter em ordem o seu universo. O seu esposo trabalhava na pequena agência de um banco. Entrara como paquete, com a terceira classe, trabalhara e estudara de noite, fora promovido. Quando casou com Bárbara tinha o segundo ano do liceu, e decidira que tinha de fazer o sétimo. Pediu e conseguiu transferência para a capital do distrito, depois para Lisboa. Bárbara continuara a ler não tanto; e, sem reparar, baixara o nível qualitativo, já heterogéneo, das suas leituras. Os clássicos foram-se tornando raros e depois ausentes, da literatura actual lia uma grande percentagem de romancecos cor-de-rosa. Falta acrescentar o nascimento de um filho, um único pois o marido queria fazer do filho um doutor e achava que não tinham meios nem posses para decentemente criarem mais do que um. Bárbara ainda murmurara, numa noite de amores mais fogosos, que gostaria de ter dois, agora uma menina, mas o marido cumprira escrupulosamente o seu coitus interruptus e a conversa de bidescendência ficara por ali. Bárbara considerara que todas as paixões são ilusórias, coisas que se inventam para se porem nos livros e se convencerem as raparigas novas, para as levar ao casamento que é necessário à sociedade. E assim estamos quase no princípio desta história, com Bárbara afincada nas suas tarefas domésticas, com as emoções e as hormonas à flor da pele, com nostalgias incertas, e o marido no banco. O filho, criado a grandes doses de mimo materno, e também com larga porção de indulgência paterna, diga-se em abono da verdade, revelara-se mais preguiçoso do que o esperado. Chumbara alguns anos, estava com dezanove e ainda não acabara o liceu». In Maria Isabel Barreno, As Vésperas Esquecidas, Editorial Caminho, Lisboa, 1999, ISBN 972-211-248-1.

Cortesia ECaminho/JDACT