O tempo da publicação
«(…) Em 1916, o padre Cordeiro, autor de um conjunto considerável de
escritos espirituais de orientação filojesuítica, vivia na Galiza depois de ter
estado durante algum tempo em Inglaterra, em
exercício do ministério sacerdotal em Coalville (Leicestershire). Na introdução
às Memórias, conta que, no
decurso dessa estada, um dia, a superiora do colégio do Sagrado Coração de
Jesus, a madre Virgínia Roque, aludiu a um manuscrito, oferta do pároco
da freguesia, o reverendo Joseph Degen, que tinha estudado em Lisboa nos
Inglesinhos e o tinha trazido para Inglaterra juntamente com outros livros e
papéis. As palavras iniciais, atribuídas à condessa de Atouguia, revelavam a
natureza do texto: Bemdito e louvado seja o Santíssimo Sacramento e a Puríssima Conceição
da Virgem Maria, Senhora Nossa. O Reverendo padre frei Adriano, meu director,
me manda por Santa Obediência escrever o seguinte que são os primeiros toques
da minha conversão e a direcção do padre Gabriel Malagrida. Como Valério
Cordeiro manifestasse interesse pelo texto, a madre ofereceu-lhe e começou,
assim, a pesquisa de outras cópias ou, se possível, do original, já que o
manuscrito ido para Inglaterra nunca poderia ser, pela marca de água Bath, 1828, anterior a esta data
e, por estes anos, já a condessa tinha falecido há muito (o códice que o padre
Cordeiro possuía apresentava-se escrito
com letra bastante legível, embora um tanto apagada, em um caderno in 4º, de papel almaço, sem linhas,
numerado em cada página, desde 3 até 74, Memorias, XII). Informações
enviadas para Inglaterra pelo conde de Bertiandos, Gonçalo Pereira Silva Sousa
Menezes (1855-1929), confirmaram
que a cópia detida por Valério Cordeiro deveria ter sido efectuada a
partir de uma versão pertencente a Manuel Bento Sousa que, por sua vez, a tinha
recebido da marquesa de Abrantes, dona Maria Joana Xavier Lima (1755-1834), não havendo a absoluta
certeza de que o manuscrito em causa fosse ou não o original. Em todo o
caso, esta última lição continha as duas primeiras páginas que faltavam na cópia
de Valério Cordeiro que procedeu ao estabelecimento do texto sobre estas duas
versões.
Não temos elementos nem
informações que permitam pôr em dúvida a genuinidade do documento ou suspeitar
da sua atribuição a dona Mariana Távora. De resto, o itinerário do códice acima
enunciado, cujo original parece ter pertencido à condessa de Murça, dona Helena
Maria Piedade Lencastre (1818-1889), torna credível que um
relato que fazia apologia dos Távoras, vincando a crueldade de Sebastião
José, e louvava os jesuítas, através da narrativa da direcção espiritual de
Malagrida,
fizesse o seu percurso, pelo menos nos primeiros anos do século XIX, nos
círculos da nobreza partidários de Miguel Bragança. Porém, se procedermos à
identificação rigorosa das famílias a que o padre Cordeiro brevemente alude e
não identifica, seguindo as pistas apenas indiciadas, poderemos obter dados
propiciadores de conclusões mais consistentes que em muito podem contribuir
para explicar o roteiro seguido pelo códice. De facto, a condessa de Murça,
dona Helena Maria Piedade Lencastre (1818-1889), que parece ter possuído
o autógrafo, era filha dos 4ºs marqueses de Abrantes, José Maria Piedade Lencastre
(1784-1827)
e de dona Helena Santíssimo Sacramento Vasconcelos Sousa (1786-1846). Como se sabe,
o marquês, que foi um grande apoiante do infante Miguel, era neto dos marqueses
de Ponte de Lima, Pedro e dona Eugénia Maria Josefa Bragança (1725-1795),
por sua mãe, dona Maria Joana Xavier Lima, 3ª marquesa de Abrantes. Tomás
Xavier Lima Nogueira (1727-1800), 1º marquês de Ponte de
Lima, tinha sido ministro de dona Maria I e pertencia ao círculo de relações
dos Távoras (foi secretário de estado desde 1777; seu pai, Tomás Silva Teles mandado prender por Sebastião
José em 1760, tinha falecido no
cárcere de S. João da Foz). Mas, mais importante do que essa eventual relação,
se afigura o facto de o 3º marquês de Abrantes, Pedro Lencastre Silveira Castelo
Branco Sá Menezes, ser filho de José Maria Lencastre Távora (1742-1771),
6º conde de Vila Nova de Portimão que, por sua vez, descendia de Manuel Rafael
Távora (1715-1789) que era irmão de Francisco Assis, o pai de dona
Mariana e, logo, tio desta.
No
contexto em causa, não parece arriscado aceitar que o manuscrito tenha passado para um ramo directamente aparentado com
os Távoras, antes ou depois da morte de dona Mariana, que deve ter ocorrido por
1802, e sobretudo depois da extinção
da casa dos Atouguias, cuja representação passou para os condes da Ribeira, através
de uma tia de Jerónimo Ataíde, dona Leonor Teresa Maria Ataíde Menezes, irmã do
pai, Luís Peregrino, e casada com Luís Câmara, 3º conde da Ribeira Grande (a pista dos filhos de dona Mariana revela-se
muito difícil de seguir; Memorias
Históricas e Genealógicas dos Grandes de Portugal regista o nome dos
seis: Luís, Francisco, Leonor, Rosa, Clara, António; neste aspecto não
conseguimos ir mais longe que as informações enviadas pelo conde de Bertiandos,
em 20 de Janeiro de 1917, ao
padre Cordeiro: As suas duas filhas, Leonor e Clara foram freiras no convento
de Sacavém, onde estiveram presas com a mãe e com seu irmão António; além
destes deixaram os condes os seguintes filhos: Luiz, que logo depois da
desgraça da família foi mandado entregar aos congregados da missão de S.
Vicente da Trindade, de Lisboa, onde o obrigaram a professar; mas elle depois
da morte de El-Rei, annulou os votos e passando a França em 1807, casou anos depois
e teve dois filhos, um dos quaes casou e não sei se teve descendência, que em
todo o caso deve ter acabado […]; este Luiz veio a morrer em Lisboa em 1828, pouco
mais ou menos. Francisco Atayde e António Atayde morreram em Lisboa; não sei a
data; mas sei que o último dos homens que morreu foi Luiz, Clara, freira,
morreu depois de 1834; dona Leonor morreu antes, segundo me parece, Memorias,
XXV-XXVI). Não surpreende também que, em 1916,
em plena questão religiosa, o padre Valério
Cordeiro, defensor da Companhia de Jesus em variados escritos, tivesse
optado por publicar um códice que simultaneamente reabilitava os Távoras, denegria Sebastião José e louvava os
jesuítas, fazendo de Gabriel Malagrida uma espécie de
mártir». In Zulmira C. Santos, Entre Malagrida e Pombal. As Memórias da última
condessa de Atouguia, Península, Revista
de Estudos Ibéricos, nº 2, 2005, 401-416, Universidade do Porto.
Cortesia
UPorto/Península/JDACT