quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Entre Malagrida e Pombal. As Memórias da última condessa de Atouguia. Zulmira C. Santos. «Como Valério Cordeiro manifestasse interesse pelo texto, a madre ofereceu-lhe e começou, assim, a pesquisa de outras cópias ou, se possível, do original, já que o manuscrito…»

Cortesia de wikipedia

O tempo da publicação
«(…) Em 1916, o padre Cordeiro, autor de um conjunto considerável de escritos espirituais de orientação filojesuítica, vivia na Galiza depois de ter estado durante algum tempo em Inglaterra, em exercício do ministério sacerdotal em Coalville (Leicestershire). Na introdução às Memórias, conta que, no decurso dessa estada, um dia, a superiora do colégio do Sagrado Coração de Jesus, a madre Virgínia Roque, aludiu a um manuscrito, oferta do pároco da freguesia, o reverendo Joseph Degen, que tinha estudado em Lisboa nos Inglesinhos e o tinha trazido para Inglaterra juntamente com outros livros e papéis. As palavras iniciais, atribuídas à condessa de Atouguia, revelavam a natureza do texto: Bemdito e louvado seja o Santíssimo Sacramento e a Puríssima Conceição da Virgem Maria, Senhora Nossa. O Reverendo padre frei Adriano, meu director, me manda por Santa Obediência escrever o seguinte que são os primeiros toques da minha conversão e a direcção do padre Gabriel Malagrida. Como Valério Cordeiro manifestasse interesse pelo texto, a madre ofereceu-lhe e começou, assim, a pesquisa de outras cópias ou, se possível, do original, já que o manuscrito ido para Inglaterra nunca poderia ser, pela marca de água Bath, 1828, anterior a esta data e, por estes anos, já a condessa tinha falecido há muito (o códice que o padre Cordeiro possuía apresentava-se escrito com letra bastante legível, embora um tanto apagada, em um caderno in 4º, de papel almaço, sem linhas, numerado em cada página, desde 3 até 74, Memorias, XII). Informações enviadas para Inglaterra pelo conde de Bertiandos, Gonçalo Pereira Silva Sousa Menezes (1855-1929), confirmaram que a cópia detida por Valério Cordeiro deveria ter sido efectuada a partir de uma versão pertencente a Manuel Bento Sousa que, por sua vez, a tinha recebido da marquesa de Abrantes, dona Maria Joana Xavier Lima (1755-1834), não havendo a absoluta certeza de que o manuscrito em causa fosse ou não o original. Em todo o caso, esta última lição continha as duas primeiras páginas que faltavam na cópia de Valério Cordeiro que procedeu ao estabelecimento do texto sobre estas duas versões.
Não temos elementos nem informações que permitam pôr em dúvida a genuinidade do documento ou suspeitar da sua atribuição a dona Mariana Távora. De resto, o itinerário do códice acima enunciado, cujo original parece ter pertencido à condessa de Murça, dona Helena Maria Piedade Lencastre (1818-1889), torna credível que um relato que fazia apologia dos Távoras, vincando a crueldade de Sebastião José, e louvava os jesuítas, através da narrativa da direcção espiritual de Malagrida, fizesse o seu percurso, pelo menos nos primeiros anos do século XIX, nos círculos da nobreza partidários de Miguel Bragança. Porém, se procedermos à identificação rigorosa das famílias a que o padre Cordeiro brevemente alude e não identifica, seguindo as pistas apenas indiciadas, poderemos obter dados propiciadores de conclusões mais consistentes que em muito podem contribuir para explicar o roteiro seguido pelo códice. De facto, a condessa de Murça, dona Helena Maria Piedade Lencastre (1818-1889), que parece ter possuído o autógrafo, era filha dos 4ºs marqueses de Abrantes, José Maria Piedade Lencastre (1784-1827) e de dona Helena Santíssimo Sacramento Vasconcelos Sousa (1786-1846). Como se sabe, o marquês, que foi um grande apoiante do infante Miguel, era neto dos marqueses de Ponte de Lima, Pedro e dona Eugénia Maria Josefa Bragança (1725-1795), por sua mãe, dona Maria Joana Xavier Lima, 3ª marquesa de Abrantes. Tomás Xavier Lima Nogueira (1727-1800), 1º marquês de Ponte de Lima, tinha sido ministro de dona Maria I e pertencia ao círculo de relações dos Távoras (foi secretário de estado desde 1777; seu pai, Tomás Silva Teles mandado prender por Sebastião José em 1760, tinha falecido no cárcere de S. João da Foz). Mas, mais importante do que essa eventual relação, se afigura o facto de o 3º marquês de Abrantes, Pedro Lencastre Silveira Castelo Branco Sá Menezes, ser filho de José Maria Lencastre Távora (1742-1771), 6º conde de Vila Nova de Portimão que, por sua vez, descendia de Manuel Rafael Távora (1715-1789) que era irmão de Francisco Assis, o pai de dona Mariana e, logo, tio desta.
No contexto em causa, não parece arriscado aceitar que o manuscrito tenha passado para um ramo directamente aparentado com os Távoras, antes ou depois da morte de dona Mariana, que deve ter ocorrido por 1802, e sobretudo depois da extinção da casa dos Atouguias, cuja representação passou para os condes da Ribeira, através de uma tia de Jerónimo Ataíde, dona Leonor Teresa Maria Ataíde Menezes, irmã do pai, Luís Peregrino, e casada com Luís Câmara, 3º conde da Ribeira Grande (a pista dos filhos de dona Mariana revela-se muito difícil de seguir; Memorias Históricas e Genealógicas dos Grandes de Portugal regista o nome dos seis: Luís, Francisco, Leonor, Rosa, Clara, António; neste aspecto não conseguimos ir mais longe que as informações enviadas pelo conde de Bertiandos, em 20 de Janeiro de 1917, ao padre Cordeiro: As suas duas filhas, Leonor e Clara foram freiras no convento de Sacavém, onde estiveram presas com a mãe e com seu irmão António; além destes deixaram os condes os seguintes filhos: Luiz, que logo depois da desgraça da família foi mandado entregar aos congregados da missão de S. Vicente da Trindade, de Lisboa, onde o obrigaram a professar; mas elle depois da morte de El-Rei, annulou os votos e passando a França em 1807, casou anos depois e teve dois filhos, um dos quaes casou e não sei se teve descendência, que em todo o caso deve ter acabado […]; este Luiz veio a morrer em Lisboa em 1828, pouco mais ou menos. Francisco Atayde e António Atayde morreram em Lisboa; não sei a data; mas sei que o último dos homens que morreu foi Luiz, Clara, freira, morreu depois de 1834; dona Leonor morreu antes, segundo me parece, Memorias, XXV-XXVI). Não surpreende também que, em 1916, em plena questão religiosa, o padre Valério Cordeiro, defensor da Companhia de Jesus em variados escritos, tivesse optado por publicar um códice que simultaneamente reabilitava os Távoras, denegria Sebastião José e louvava os jesuítas, fazendo de Gabriel Malagrida uma espécie de mártir». In Zulmira C. Santos, Entre Malagrida e Pombal. As Memórias da última condessa de Atouguia, Península, Revista de Estudos Ibéricos, nº 2, 2005, 401-416, Universidade do Porto.

Cortesia UPorto/Península/JDACT