«A mais visível e evidente organização
do romance é em cinco sequências de casas.
As duas primeiras e as duas últimas são constituídas por três casas, a sequência central, a terça casa, é um fingimento de texto
dramático, organizado já não em três capítulos mas em três actos. Cada casa é designada
por um algarismo, que indica a sequência em que está incluída (I, II, IV e V), pelo
nome próprio da personagem que a ocupa,
e por um título, que é o nome próprio do texto que constitui a casa. Maria Alzira
Seixo mostrou já a polissemia desses títulos, o modo como são atravessados por um
complexo intrincado significativo. Insistamos em que cada palavra ou sintagma
titular é múltipla e diversamente reinvestido semanticamente pelo texto do
capítulo, que de diversas formas integra reescritas dessas palavras ou sintagmas.
Anote-se apenas que a I casa se intitula Vaga
(casa de Elisa) e a última Atrium
(casa de Elvira). Vaga é,
entretanto, também o título do terceiro e último bloco narrativo do romance anterior
de Maria, Maina Mendes. O eco é de várias formas significativo. Significativo
dos modos como a coerência do percurso literário se constrói, significativo dos
fios que unem, nas suas ciaras diferenças, os dois romances. Articulação possível
e aliciante entre Matilde, a filha amada pelo pai, a filha que cumpriu separação
(até política), e que estando longe anuncia o regresso, e Elisa. Como entre a avó
Maina, a Muda, e a bisavó Elisa, a Douda. Como entre a mudez rebelde de Maina,
a procura de escrita de Elisa e a exiguidade de palavras de Elvira. Nesse último
bloco do primeiro romance, vaga
pode-se dizer da casa onde Matilde ainda não voltou, onde o seu pai se suicidou
já, da casa onde a avó Maina trabalha e espera. Vaga quer dizer a suspensão, na qual termina esse romance. Como, aqui,
em Casas
Pardas, vaga está a casa de Elisa,
no sentido em que esta está em suspenso, no sentido em que Elisa não ocupou ainda
decisivamente a que deverá ser a sua casa, casa a descobrir, a habitar, a assumir,
para lá da consumação da separação. Atrium
é, por sua vez, o título do primeiro (e último) capítulo de Elvira na sua nova casa,
e diz esse lugar como o do início de uma nova habitação. Entre uma casa Vaga e uma
casa Atrium se move este romance, entre o seu início e fim; entre uma abertura em
suspenso e um final de abertura: Vaga e Atrium, dialéctica da ainda ausência e da
promessa de presença, ambos lugares para dizer um movimento e os seus modos; gestos,
figurações, apelos ao movimento. A sucessão das sequências acompanha, como o próprio
texto da primeira casa da última sequência o exibe (passagem citada em epígrafe),
a sucessão dos dias e das noites: I - manhã, II – entardecer e noite, / terça casa - noite /, IV - manhã, V – noite
(a V Casa de Elvira é de manhã à noite). Na primeira, segunda e quarta sequência,
a sucessão das casas, repete a ordem dos nomes próprios das personagens: Elisa,
Elvira, Mary; e organiza-se segundo o paradigma dos pronomes pessoais Eu (Ehsa), Tu (Elvira), Ela (Mary). O
papel organizador da sequência dos pronomes pessoais (como o mostrou Margarida Barahona)
evidencia-se pelo facto de, na última sequência, se alterar a ordem nominal das
casas, mantendo-se, entretanto, invertida agora, a ordem dos pronomes pessoais.
Assim: Elisa, ela, Mary, tu, Elvira, eu. A sequência e o livro fecham assim sobre a nova casa de Elvira que
diz eu. A terça casa, por sua vez, imitação
de teatro, sequência central, é a única em que as três personagens das casas se
reúnem, se encontram num espaço, numa casa. Note-se entretanto que tal encontro
só se dá nos actos terminais, no primeiro e no terceiro, que são os actos na
cozinha, enquanto o do meio é na sala de jantar e aí apenas se encontram, com outras
personagens, Elisa e Mary. Pelo próprio efeito de o texto se distribuir em falas,
todas estas personagens dizem eu, são
invocadas pelo tu (ou forma
correspondente) e são referidas na 3.ª pessoa». In Maria Velho da Costa, Casas Pardas,
1986, Assírio e Alvim, Porto, 2013, 978-972-371-689-4.
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