sexta-feira, 23 de outubro de 2015

As Pirâmides de Napoleão. William Dietrich. «De longe, podia-se ver os contornos de Notre Dame, agora renomeada ‘Templo da Razão’, sabidamente construída sobre o templo romano dedicado à mesma deusa egípcia»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Que tentativa patética de revanche verbal. Fiz uma rápida reverência à madame e saí para dar de cara com uma noite  um tanto sombria, graças à neblina industrial causada pela Nova Era. Era só olhar para o oeste e ver o brilho escarlate provocado pelo crescimento das fábricas nos subúrbios de Paris, sem dúvida o prenúncio do surgimento de uma época ainda mais mecanizada. Um lanterneiro estava perto da porta à espera de clientes. Eu realmente estava com sorte. A sua aparência era um pouco obscura por causa da capa e do capuz que vestia, mas, com certeza, era mais escuro que um europeu: marroquino talvez, disposto a fazer um trabalho baixo típico de imigrantes. Ele reverenciou levemente e revelou o seu sotaque árabe. Monsieur, tens a aparência de um homem de sorte. E estou prestes a me sair melhor ainda. Quero contratar os seus serviços para me guiar até ao meu apartamento e, depois, ao endereço de uma donzela. Dois francos te satisfazem? Três, se você me afastar das poças de lama. Como é maravilhoso ser o ganhador da noite. Contratar um guia era fundamental já que a Revolução havia se dedicado a tudo com fervor, excepto limpeza e reparos das ruas. Os esgotos estavam entupidos, só metade das lanternas públicas era acesa, e os buracos cresciam cada vez mais. E também não ajudava o facto de o novo governo ter renomeado mais de mil ruas com os nomes de heróis revolucionários e todos ficavam constantemente perdido na cidade. Por isso, meu guia indicava o caminho carregando uma lanterna que ficava pendurada num cajado de duas mãos. A madeira do bastão era trabalhada à mão. As laterais tinham fissuras que davam mais firmeza e o pólo que segurava a lanterna tinha o formato de uma cabeça de serpente. A boca do réptil segurava a argola de sustentação da lanterna. Era quase certo afirmar que se tratava de uma obra de arte vinda da terra natal do guia. Fui ao meu apartamento primeiro. Precisava guardar a maior parte dos ganhos da noite. Sabia muito bem que não era seguro levar todas as minhas riquezas para a alcova de uma prostituta e, especialmente sabendo do interesse de todos, também resolvi esconder o medalhão. Demorei alguns minutos para decidir onde guardá-lo. Resolvido o impasse, retornei às ruas escuras de Paris e segui o caminho para a casa de Minette. Mesmo que a cidade ainda fosse gloriosa por seu tamanho e esplendor, ela podia ser comparada a uma mulher de certa idade: era bonita à distância, mas um desastre de perto. Casarões haviam sido saqueados. O palácio de Tuileries estava interditado e vazio, com as suas janelas lembrando órbitas cegas. Mosteiros e igrejas foram arruinados e trancafiados, e ninguém parecia ter aplicado sequer uma camada de tinta em toda a cidade desde a Queda da Bastilha. A Revolução foi um desastre económico, menos para generais e políticos. Poucos franceses ousavam reclamar abertamente; afinal de contas, governos sempre encontram maneiras de justificar os seus erros. O próprio Bonaparte, até então um oficial de artilharia pouco conhecido, fez sua grande jogada no último levante revolucionário e garantiu a sua ascensão. Passamos pelos escombros da desmantelada Bastilha. Desde a sua tomada, vinte e cinco mil pessoas haviam sido executadas pelo Terror e dez vezes mais conseguiram escapar. Cinquenta e sete novas prisões foram construídas para suprir o debilitado sistema penitenciário. Sem qualquer senso de ironia, o lugar passou a ser chamado de Fonte da Regeneração: com uma grandiosa estátua da deusa Isis que, quando accionada, lançava dois jactos de água partindo de seus seios. De longe, podia-se ver os contornos de Notre Dame, agora renomeada Templo da Razão, sabidamente construída sobre o templo romano dedicado à mesma deusa egípcia. Um recado do destino sobre o que me aconteceria? Duvido muito, dificilmente percebíamos o que nos esperava naquele tempo. Quando paguei o lanterneiro nem percebi que ele havia ficado um pouco mais que o usual em frente ao apartamento, depois que eu entrei. Acompanhado por rangidos e um constante cheiro de urina seca, subi a escadaria de madeira até ao quarto de Minette. O seu apartamento ficava no desvalorizado terceiro andar, logo abaixo do sótão, onde moravam serventes e artistas. Pela altitude pude ter ideia do desempenho medíocre de seu negócio, sem dúvida alguma prejudicado pela economia revolucionária tanto quanto a dos fabricantes de perucas e outros adornos. Minette tinha acendido apenas uma vela, cuja luz era reflectida pela bacia de cobre que ela usou para lavar as suas coxas. Ela estava vestida apenas com uma camisa branca com laços no pescoço. Claramente um convite a uma exploração mais minuciosa em breve. Ela veio receber-me com um beijo com gosto delicado de vinho e licor. Você trouxe meu presente? Puxei-a para perto e aproximei minha cintura. Você já pode senti-lo agora. Não. Ela recuou e colocou a mão no meu peito. Aqui, perto do seu coração». In William Dietrich, As Pirâmides de Napoleão, 2007, Grandes Narrativas, nº 490, Editorial Presença, 2011, ISBN 978-972-234-450-0.

Cortesia EPresença/JDACT