Quem
sou? 24 de Março de 1897
«(…) Agradava a napolitanos e sicilianos,
eles mesmos mulatos não por erro de uma mãe meretriz, mas pela história de
gerações, nascidos de cruzamentos entre levantinos desleais, árabes suarentos e
ostrogodos degenerados, que herdaram o pior de seus antepassados híbridos: dos
sarracenos a indolência, dos suevos a ferocidade, dos gregos a irresolução e o
gosto por se perder em tagarelices até procurar cabelo em ovo. Quanto ao resto,
basta ver os moleques que em Nápoles
encantam os estrangeiros estrangulando-se com espaguetes que enfiam goela
abaixo com os dedos, lambuzando-se de tomate estragado. Não os vi, creio, mas
sei. O italiano é inconfiável, mentiroso, vil, traidor, sente-se mais à vontade
com o punhal que com a espada, melhor com o veneno que com o fármaco,
escorregadio nas negociações, coerente apenas em trocar de bandeira a cada
vento, e eu vi o que aconteceu aos generais bourbónicos assim que apareceram os
aventureiros de Garibaldi e os generais piemonteses. É que os italianos se
modelaram com base nos padres, o único governo verdadeiro que já tivemos desde
que aquele pervertido do último imperador romano foi sodomizado pelos bárbaros
porque o cristianismo havia debilitado a altivez da raça antiga. Os padres...
Como os conheci? Na casa do avô, creio; tenho a obscura lembrança de olhares
fugidios, dentaduras estragadas, hálitos pesados, mãos suadas que tentavam acariciar-me
a nuca.
Que nojo. Ociosos, pertencem às classes
perigosas, como os ladrões e os
vagabundos. O sujeito faz-se padre ou frade só para viver no ócio, e o ócio é
garantido pelo número deles. Se fossem, digamos, um em mil almas, os padres
teriam tanto que fazer que não poderiam ficar de papo para o ar comendo,
capões. E entre os padres mais indignos o governo escolhe os mais estúpidos, e
nomeia-os bispos. Começa a tê-los ao seu redor assim que nasce, quando o baptizam;
reencontra-os na escola, se os seus pais tiverem sido suficientemente carolas
para confiá-lo a eles; depois, vêm a primeira comunhão, o catecismo e a crisma;
lá está o padre no dia do seu casamento, a lhe dizer o que deve fazer no quarto
e no dia seguinte no confessionário, a perguntar-lhe, para se poder excitar
atrás da treliça, quantas vezes você fez aquilo. Falam-lhe do sexo com horror,
mas todos os dias os vê sair de um leito incestuoso sem sequer lavar as mãos, e
vão comer e beber o seu Senhor, para depois cagá-lo e mijá-lo. Repetem que o seu
reino não é desse mundo, e metem as mãos em tudo o que podem roubar. A
civilização não alcançará a perfeição enquanto a última pedra da última igreja
não tiver caído sobre o último padre, e a Terra estiver livre dessa corja.
Os comunistas difundiram a ideia de que a
religião é o ópio dos povos. É verdade, porque serve para arrefecer as
tentações dos súbditos, e se não existisse a religião haveria o dobro de
pessoas sobre as barricadas, ao passo que nos dias da Comuna não eram
suficientes e foi possível dispersá-las sem muito trabalho. Mas, depois que
escutei aquele médico austríaco falar das vantagens da droga colombiana, eu diria
que a religião é também a cocaína dos povos, porque a religião impeliu e impele
às guerras, aos massacres dos infiéis, e isso vale para cristãos, muçulmanos e
outros idólatras, e, se os negros da África se limitavam a massacrar-se entre
si, os missionários os converteram e os fizeram tornar-se tropa colonial,
adequadíssima a morrer na primeira linha e a violar as mulheres brancas quando
entram numa cidade. Os homens nunca fazem o mal tão completa e
entusiasticamente como quando o fazem por convicção religiosa. Os piores de
todos são certamente os jesuítas. Tenho como que a sensação de lhes haver
pregado algumas peças, ou talvez tenham sido eles que me fizeram mal, ainda não
recordo bem. Ou talvez tenham sido os seus irmãos carnais, os maçons. Como os
jesuítas, apenas um pouco mais confusos. Aqueles ao menos têm lá uma teologia e
sabem como manobrá-la, esses a têm em demasia e nisso perdem a cabeça. Dos
maçons, falava-me o meu avô. Com os judeus, eles cortaram a cabeça do rei. E
geraram os carbonários, maçons um pouco mais estúpidos porque se deixavam
fuzilar, antes, e depois deixaram cortar a cabeça por terem errado ao fabricar
uma bomba ou tornaram-se socialistas, comunistas e communards; isto é, partidários
da Comuna. Todos no muro de fuzilamento. Bom trabalho, Thiers. Maçons e
jesuítas. Os jesuítas são maçons vestidos de
mulher. Odeio as mulheres, pelo pouco que sei delas. Durante anos, fui obsecado
por aquelas brasseries à femmes, onde se reúnem malfeitores de todas as
categorias. Piores do que as casas de tolerância. Essas ao menos têm dificuldade
em se instalar, por causa da oposição dos vizinhos, ao passo que as cervejarias
podem ser abertas em toda parte porque, dizem, são apenas locais onde se vai
para beber. Mas se bebe no térreo e pratica-se o meretrício nos andares
superiores. Toda cervejaria tem um tema, e os trajes das moças adaptam-se a
ele; aqui encontra garçonetes alemãs, ali diante do Palácio de Justiça outras
em toga de advogado. Por outro lado, bastam os nomes, como Brasserie du
Tire-Cul, Brasserie des Belles Marocaines ou Brasserie des Quatorze Fesses, não
longe da Sorbonne. São quase sempre mantidas por alemães; aí está um modo de
minar a moralidade francesa». In Umberto Eco, O Cemitério de Praga, 2010,
tradução de Joana Angélica Melo, ePUBr, Biblioteca Digital Brasileira, Editora
Record, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.
Cortesia de ERecord/JDACT