quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

31 na Literatura. O Cemitério de Praga. Umberto Eco. «Repetem que o seu reino não é desse mundo, e metem as mãos em tudo o que podem roubar. A civilização não alcançará a perfeição enquanto a última pedra da última igreja não tiver caído sobre o último padre, e a Terra estiver livre dessa corja»

Cortesia de wikipedia e jdact

Quem sou? 24 de Março de 1897
«(…) Agradava a napolitanos e sicilianos, eles mesmos mulatos não por erro de uma mãe meretriz, mas pela história de gerações, nascidos de cruzamentos entre levantinos desleais, árabes suarentos e ostrogodos degenerados, que herdaram o pior de seus antepassados híbridos: dos sarracenos a indolência, dos suevos a ferocidade, dos gregos a irresolução e o gosto por se perder em tagarelices até procurar cabelo em ovo. Quanto ao resto, basta ver os moleques que em Nápoles encantam os estrangeiros estrangulando-se com espaguetes que enfiam goela abaixo com os dedos, lambuzando-se de tomate estragado. Não os vi, creio, mas sei. O italiano é inconfiável, mentiroso, vil, traidor, sente-se mais à vontade com o punhal que com a espada, melhor com o veneno que com o fármaco, escorregadio nas negociações, coerente apenas em trocar de bandeira a cada vento, e eu vi o que aconteceu aos generais bourbónicos assim que apareceram os aventureiros de Garibaldi e os generais piemonteses. É que os italianos se modelaram com base nos padres, o único governo verdadeiro que já tivemos desde que aquele pervertido do último imperador romano foi sodomizado pelos bárbaros porque o cristianismo havia debilitado a altivez da raça antiga. Os padres... Como os conheci? Na casa do avô, creio; tenho a obscura lembrança de olhares fugidios, dentaduras estragadas, hálitos pesados, mãos suadas que tentavam acariciar-me a nuca.
Que nojo. Ociosos, pertencem às classes perigosas, como os ladrões e os vagabundos. O sujeito faz-se padre ou frade só para viver no ócio, e o ócio é garantido pelo número deles. Se fossem, digamos, um em mil almas, os padres teriam tanto que fazer que não poderiam ficar de papo para o ar comendo, capões. E entre os padres mais indignos o governo escolhe os mais estúpidos, e nomeia-os bispos. Começa a tê-los ao seu redor assim que nasce, quando o baptizam; reencontra-os na escola, se os seus pais tiverem sido suficientemente carolas para confiá-lo a eles; depois, vêm a primeira comunhão, o catecismo e a crisma; lá está o padre no dia do seu casamento, a lhe dizer o que deve fazer no quarto e no dia seguinte no confessionário, a perguntar-lhe, para se poder excitar atrás da treliça, quantas vezes você fez aquilo. Falam-lhe do sexo com horror, mas todos os dias os vê sair de um leito incestuoso sem sequer lavar as mãos, e vão comer e beber o seu Senhor, para depois cagá-lo e mijá-lo. Repetem que o seu reino não é desse mundo, e metem as mãos em tudo o que podem roubar. A civilização não alcançará a perfeição enquanto a última pedra da última igreja não tiver caído sobre o último padre, e a Terra estiver livre dessa corja.
Os comunistas difundiram a ideia de que a religião é o ópio dos povos. É verdade, porque serve para arrefecer as tentações dos súbditos, e se não existisse a religião haveria o dobro de pessoas sobre as barricadas, ao passo que nos dias da Comuna não eram suficientes e foi possível dispersá-las sem muito trabalho. Mas, depois que escutei aquele médico austríaco falar das vantagens da droga colombiana, eu diria que a religião é também a cocaína dos povos, porque a religião impeliu e impele às guerras, aos massacres dos infiéis, e isso vale para cristãos, muçulmanos e outros idólatras, e, se os negros da África se limitavam a massacrar-se entre si, os missionários os converteram e os fizeram tornar-se tropa colonial, adequadíssima a morrer na primeira linha e a violar as mulheres brancas quando entram numa cidade. Os homens nunca fazem o mal tão completa e entusiasticamente como quando o fazem por convicção religiosa. Os piores de todos são certamente os jesuítas. Tenho como que a sensação de lhes haver pregado algumas peças, ou talvez tenham sido eles que me fizeram mal, ainda não recordo bem. Ou talvez tenham sido os seus irmãos carnais, os maçons. Como os jesuítas, apenas um pouco mais confusos. Aqueles ao menos têm lá uma teologia e sabem como manobrá-la, esses a têm em demasia e nisso perdem a cabeça. Dos maçons, falava-me o meu avô. Com os judeus, eles cortaram a cabeça do rei. E geraram os carbonários, maçons um pouco mais estúpidos porque se deixavam fuzilar, antes, e depois deixaram cortar a cabeça por terem errado ao fabricar uma bomba ou tornaram-se socialistas, comunistas e communards; isto é, partidários da Comuna. Todos no muro de fuzilamento. Bom trabalho, Thiers. Maçons e jesuítas. Os jesuítas são maçons vestidos de mulher. Odeio as mulheres, pelo pouco que sei delas. Durante anos, fui obsecado por aquelas brasseries à femmes, onde se reúnem malfeitores de todas as categorias. Piores do que as casas de tolerância. Essas ao menos têm dificuldade em se instalar, por causa da oposição dos vizinhos, ao passo que as cervejarias podem ser abertas em toda parte porque, dizem, são apenas locais onde se vai para beber. Mas se bebe no térreo e pratica-se o meretrício nos andares superiores. Toda cervejaria tem um tema, e os trajes das moças adaptam-se a ele; aqui encontra garçonetes alemãs, ali diante do Palácio de Justiça outras em toga de advogado. Por outro lado, bastam os nomes, como Brasserie du Tire-Cul, Brasserie des Belles Marocaines ou Brasserie des Quatorze Fesses, não longe da Sorbonne. São quase sempre mantidas por alemães; aí está um modo de minar a moralidade francesa». In Umberto Eco, O Cemitério de Praga, 2010, tradução de Joana Angélica Melo, ePUBr, Biblioteca Digital Brasileira, Editora Record, Rio de Janeiro, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.

Cortesia de ERecord/JDACT